Artistas destacam a beleza do vitiligo que independe de tratamentos de repigmentação.
Karoline Santos e Mariana Santos
A arte é um retrato da vida e das vivências do artista. É através dela que o ser humano exteriora pensamentos e reivindica o seu espaço no mundo. A arte é, portanto, um exercício de cidadania e uma forma de tornar perceptível a existência de algo ou alguém. Ao falarmos de vitiligo podemos ser tentados a pensar no preconceito, na vergonha e nos procedimentos a que os pacientes são submetidos, entretanto, existe beleza em cada uma das manchas que podem ou não ser apagadas por tratamentos.
Enquanto para algumas pessoas o vitiligo pode representar uma mudança brusca na forma de viver e se relacionar, a história de Giovanni Ferreira foi por um rumo muito mais tranquilo. Apesar do vitiligo ter se manifestado quanto ele tinha 17 anos, a familiaridade com a condição fez com que todo o processo de adaptação ocorresse sem grandes problemas.
Artista desde a infância, Giovanni, que hoje é ator e cantor, brinca que começou a sua carreira na escola que sua mãe dirigia em casa, em uma peça de dia das mães. Ele é um dos únicos atores com vitiligo registrados no Brasil e justamente por isso considera fundamental falar da relação entre a sua pele e sua arte.
Apesar da experiência com o teatro desde a infância, a música chegou na vida de Giovanni depois de adulto. “Eu fui participar de um workshop e o professor de canto perguntou: ‘você fala sobre a sua vivência nas suas músicas?’, e eu disse não, então ele falou: ‘cara, você é um discurso ambulante, você tem que jogar isso na sua arte”, e assim foi, como conta o cantor.
As três músicas lançadas no ano passado são fruto de um projeto que levou anos para ser colocado em prática. Em meio a muitos desafios e frustrações, Giovanni e seu amigo Nevs conseguiram finalmente dar som às causas que defendem e divulgam, em letras que falam sobre vitiligo, auto aceitação, opressão e também machismo. “A música veio para fazer uma mistura de tudo o que a gente vivia e do que a gente sabe que outras pessoas também vivem”, explica o artista.
Com base na experiência de Giovanni, dentro do teatro ainda existe um longo percurso até o “mundo ideal“ já que, para ele, “o mercado brinca com essa questão de diversidade”. Eles querem ‘pessoas fora do padrão’ mas padronizam esse ‘fora do padrão’. Alguns até querem homens com vitiligo, mas querem homens malhados, altos e com cabelo curto.”
Para o ator também existe um problema complexo relacionado aos testes para determinados papéis. “Se o teste vem ‘homem com vitiligo’ é mais fácil, porque é muito raro um ator com vitiligo, mas se vem só ‘homem’ a história é outra”, explica Giovanni acrescentando que muitas vezes o ator com vitiligo não é considerado para vagas que não especificam a aparência da pele.
Felizmente, Giovanni não sofreu com o preconceito explícito e relata que nunca percebeu nada muito direto, mas isso se deve principalmente a forma como ele foi educado em casa. Para ele, a segurança ao enfrentar os problemas do dia a dia precisa ter uma base sólida no convívio familiar.
Ele conta que Aline Ferreira, sua mãe, teve papel fundamental na sua vivência com o vitiligo. “A minha mãe tem vitiligo e, modéstia a parte, a minha mãe é muito bonita, então se o meu padrão de beleza era uma pessoa com vitiligo, quando eu percebi a primeira mancha foi tudo muito tranquilo”, explica Giovanni e acrescenta que ao contrário dele, anos atrás, sua mãe teve dificuldade em ser diagnosticada e precisou sair do Brasil para descobrir que tinha vitiligo.
Com um exemplo de força e determinação tão positivo dentro de casa, Giovanni relembra que até fez tratamento por um tempo, mas percebeu que as manchas não eram um problema real. “Quando você vê pessoas que te aceitam, isso reflete muito na autoestima, principalmente quando são seus pais”, enfatiza.
Assim como em palestras e entrevistas que participou anteriormente, Giovanni fez questão de ressaltar a importância da postura dos pais na aceitação do vitiligo. “É o que eu sempre falo: o jeito que você, pai e mãe, lida com o vitiligo interfere muito na forma como a criança entende o que está acontecendo”, aponta. “O maior trabalho da conscientização é trazer informação suficiente para que as pessoas parem de criar um monstro”, acrescenta o artista explicando a motivação de seus trabalhos explicativos.
Iniciativas que divulgam profissionais com vitiligo são essenciais para a introdução do tema no cotidiano de todo brasileiro. Um bom exemplo disso é o trabalho desenvolvido pelo designer e fotógrafo José Oliveira que criou o Minha Pele Flui, um fotolivro com diversos ensaios e informações sobre vitiligo.
Ao ser questionado sobre a motivação do projeto, José explica: “É aquele questionamento, né? Qual o meu propósito? Como eu vou impactar a vida das pessoas? (…) É através do design que eu percebo esse mundo de possibilidades.”
Quando surgiu a intenção de produzir as sessões fotográficas, José ainda não conhecia as pessoas que se tornaram seus modelos, para tanto foi necessário entrar em contato com todos eles pela internet. “Eu comecei a ir atrás de gente de São Paulo, mas o problema era achar pessoas com vitiligo que estavam dispostas a aparecer e se mostrar com vitiligo”, explica José.
O nome do projeto, Minha Pele Flui, foi a primeira coisa decidida, e também norteou toda a direção fotográfica da produção. “O Giovanni foi a primeira pessoa que eu levei para o estúdio, então a gente ficou umas três ou quatro horas fazendo tudo o que ele tinha vontade”, menciona o fotógrafo.
Como, nas palavras de José, os ensaios eram “momentos muito sensíveis”, uma das estratégias era colocar música para tocar. José relembra: “O que eu falava era: ‘se joga! Qual música você gosta de ouvir?’ E tinha de tudo, tinha Maria Bethânia, tinha Pop e até orquestra sinfônica!”.
Apesar de não possuir vitiligo, José fala com carinho sobre o projeto que, segundo ele, marcará toda a sua vida. “Eu sou um cara gay, eu poderia falar sobre isso e seria confortável, mas quando você fala sobre coisas que não são sobre você, você aprende e vê que existem milhões de recortes que nem são mencionados”, pondera.
Tati Santos de Oliveira é designer gráfica há quase 20 anos e trabalha na produção e diagramação de livros infantis. A ideia do livro ‘A Menina Feita de Nuvens’ surgiu quando a filha, que foi diagnosticada com vitiligo aos três anos de idade, já estava alfabetizada e bem interessada na leitura.
Pensando na representatividade, Tati notou que não haviam livros que abordavam o tema ou que tivessem algum personagem com a condição. Ela logo já colocou a mão na massa e criou para a filha um livro de sua autoria com a própria história dela, utilizando, além da criatividade para a história, montagens com itens da casa para compor as ilustrações, como tecido, tapetes e botões.
Conforme a autora mostrava a obra para amigos e pessoas da área, mais incentivos ela recebia para enviar o projeto para ser aprovado por alguma editora. Após mais ou menos um ano de tentativas, a Estrela Cultural se interessou e publicou o trabalho na Bienal de 2018 do jeitinho que ela havia feito.
Para Tati, ‘A Menina Feita de Nuvens’ é fundamental para que as crianças com ou sem vitiligo possam conhecer e entender esta condição de maneira mais clara, leve e lúdica, sempre visando a inclusão desde muito cedo e quebrando paradigmas errôneos através da arte.
“O livro ensina as crianças, através de ilustrações únicas, a olharem com mais carinho e com mais leveza as manchinhas na pele”, explica a designer e complementa: “Acho importante para o público infantil já conhecer essa história. Tenho certeza que essas crianças vão crescer sem este preconceito”.
A obra obteve um grande alcance e é muito admirada por pessoas que, de alguma forma, se enxergaram na personagem “diferente” para a sociedade que segue seu caminho para a auto aceitação ainda pequena. Para a autora, o alcance deveria ser ainda maior e chegar às escolas para educar as crianças sobre a condição enquanto elas se divertem com a leitura.
“O livro tem um poder muito especial. A gente nem imaginava a força de um livro assim, como ele pode transformar vidas, mudar a opinião das pessoas e ajudar na conscientização do vitiligo”, conta. No momento, Tati não tem planos para novos lançamentos, já que está focada na divulgação deste trabalho em específico.
“Minha mensagem, não só para os pequenos, mas também para os pais, é que tratem com amor, carinho e normalidade caso tenham um filho, amiguinho ou conhecido com vitiligo. São só “desenhos” na pele. Isso não dói, não coça e não é contagioso, portanto, não precisa se preocupar.
Para as pessoas que lutam pela auto aceitação, ela exclama: “Não se sinta diferente, sinta-se super especial por ser desenhado por Deus! ”.
Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal