Como o desinteresse de parte da população tem contribuído com o quadro atual
Carlos Daniel
“O brasileiro aprende pelo susto, pela dor e pela multa”, afirma Alexandre Bueno, enfermeiro. Para o profissional de saúde, a negação da população brasileira em relação à existência do coronavírus é responsável pela disseminação da doença e por quase 500 mil mortes já registradas.
A desdenha gera problema. Ela começa nas redes sociais. É comentada na roda de amigos e logo atinge os lares circunstancialmente. Primeiro, um pai de família perde o emprego e depois lhe falta o sustento. Como todo problema tem uma solução, com este não é diferente. Contudo, é preciso colocar vírgulas onde caberiam pontos finais e não utilizar “panos quentes”.
Nem todo caos é perceptível. Um ser microscópico, sessenta vezes menor que um grão de areia foi capaz de protagonizar uma crise socioeconômica mundial. O forasteiro viajou incansavelmente desde o seu surgimento, em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, China. A sua estadia na Europa custou caro: uma pandemia.
Chegou de carona com um turista brasileiro que estava de retorno de uma viagem à Itália. Não pagou passagem, tampouco passou pelo processo de check-in. Em terras tropicais, o vírus soube se adaptar e se espalhou rapidamente. A repercussão nos telejornais foi imediata quando se registrou o primeiro óbito no país, em fevereiro de 2020. Com a crescente onda de negacionismo, teve a oportunidade que desejava, estabelecer-se.
O termo faz referência ao indivíduo que nega a realidade que se encontra, como forma de escapar de uma verdade desconfortável para si. Na ciência, o conceito é atribuído como rejeição dos conceitos básicos, incontestáveis e apoiados por consenso científico.
Mas qual seria o motivo do alarde? Para o estudante Renan Sousa o isolamento social decretado pelos órgãos de vigilância sanitária e autoridades não foi o suficiente. “Fica difícil acreditar em dias melhores se o próprio presidente da República não faz questão.”, afirma.
Com os pronunciamentos do presidente Bolsonaro minimizando a gravidade da doença, vários eleitores extremistas têm seguido o mesmo diálogo, negando a complexidade do vírus e potencializando o uso da hidroxicloroquina (versão modificada da cloroquina).
O remédio é prescrito para pacientes com malária, porém, passou a ser objeto de “politicagem”. Entretanto, a eficácia do medicamento não é cientificamente comprovada. Em um conjunto de análises realizado por 94 cientistas, foi apontado a hidroxicloroquina como a principal causa da alta de mortes de pacientes infectados. A avaliação foi feita com 26 estudos e 10.012 pacientes, e concluiu que 27% dos pacientes participantes morreram em comparação com 23,5% dos que haviam recebido os cuidados básicos.
Mas onde é que erramos? O país do futebol, do samba e do Carnaval já não sabe mais driblar o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS). A alegria nos sambódromos se desfez. Estamos percorrendo um trajeto longo, de sofrimento e impotência. As mais de 428 mil vítimas não foram suficientes para construirmos o respeito pela vida.
A necessidade de haver conscientização por parte das autoridades nunca foi tão necessária. O incontrolável número de casos fala sobre a falsa sensação de autoconfiança do brasileiro. Dessa forma, pode ir além dos cuidados com o corpo humano. Temos que nos imunizar contra a soberba e a desdenha.
Não há motivo para comemoração. Os profissionais da área da saúde não estão sendo valorizados por todo o esforço realizado. Eles possuem a carga horária indefinida. Essa condição os deixa mais próximos dos pacientes e longe dos familiares, camuflando a humanização dos seres humanos no jaleco branco.
A solução imediata tem sido alvo de notícias falsas nas redes sociais. Diversos comentários de internautas contra a vacina têm feito com que parte da população questionasse a sua eficiência.
O maior veículo de comunicação do mundo nunca foi conhecido integralmente. A “terra de ninguém” está cada vez mais perigosa e letal. E essa letalidade todo mundo é capaz de ter: o descontrole das palavras, por isso a informação é o melhor remédio.
A CoronaVac, como é denominada a vacina da China, havia sofrido ataques na internet antes mesmo da sua distribuição. Esse fenômeno ganhou força após o presidente da República repudiar a compra do imunizante, que foi o centro de uma disputa política com o governador do estado de São Paulo, João Dória. O Instituto Butantan, vinculado à administração paulista, desenvolveu a CoronaVac em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac. Do outro lado, o Planalto fez acordo com a Fiocruz para fabricar a vacina da Universidade de Oxford e da farmacêutica britânica AstraZeneca.
As falas deferidas pelo atual presidente Jair Bolsonaro desqualificando a origem tinha a intenção de mirar na popularidade da sua gestão, a fim de ser aceito nas eleições de 2022. A iniciativa de Dória em conseguir trazer o imunizante para o Brasil despertou preocupação de Bolsonaro que contra-atacava com inverdades “Eficácia lá embaixo”, afirmou.
E foi uma dessas mentiras que atingiu a família do senhor Geraldo Barbosa. O aposentado de 66 anos faleceu por insuficiência pulmonar potencializada pelo vírus. Ele praticava atividades físicas e caminhava em volta do lago municipal todas as manhãs. Tinha uma vida comum, mas não acreditava na pandemia. “O meu marido era duro na queda, não tinha quem mudasse a cabeça dele sobre a Covid”, explica dona Teresa Barbosa, esposa do falecido. “Ele dizia que ia ser vacinado só pela vacina do presidente”, lamenta.
O senhor Geraldo estava “engatinhando” nas mídias sociais, conforme afirma a sua neta Letícia Oliveira: “Iria fazer um ano mês que vem, que ele comprou o primeiro celular”. “(Ele) me pediu para abrir uma conta na ‘internet’ para se distrair, e foi depois daí que ele não quis ser vacinado”. O comportamento dele é a principal barreira encontrada pelos profissionais de saúde.
Alexandre Bueno é enfermeiro e docente na Universidade Federal de Catalão, trabalha na supervisão de estágio na Santa Casa de Catalão e no Hospital Nars Faiad, em Goiás. Ele se emociona ao relatar os acontecimentos vivenciados com os colegas. “Tivemos uma jovem que ajudava em casa, ela faltou três dias no serviço, no quarto dia cheguei na UTI e era ela.” O enfermeiro viu mais uma vez o sofrimento da família das vítimas. “Quando saí (do quarto), uma criança me perguntou se a mãe dela estava bem, fiquei sabendo que era o filho da minha funcionária, no dia seguinte ela faleceu.” E os fatos se repetem tanto, que atinge o emocional desses profissionais.
A realização de prestação de serviços em ambientes expostos ao vírus é essencial, mas não descarta as oscilações de humor e barreiras psicológicas enfrentadas pelos agentes de saúde. O estresse e a pressão nos hospitais podem causar a síndrome de Burnout e levar ao suicídio. O distúrbio é fruto do esgotamento funcional. Essa é uma reflexão feita em uma revisão no New England Journal of Medicine de nome: Quem é seu médico, doutor? (tradução livre do “Who is you doctor, doctor?”).
Apesar da rotina exaustiva, essas pessoas capacitadas continuam trabalhando quando chegam em casa. Ainda segundo Alexandre, a falta de cuidados da população está relacionada à cultura. “Não vemos a saúde na perspectiva da prevenção. As pessoas aprendem na pele”, salienta. O comportamento do “tanto faz” coloca em xeque a nossa capacidade de sermos empáticos, pois suplicamos por ajuda e não ajudamos quem atendeu à súplica.
“Eles veem dia e noite a morte de perto por ainda não termos a infraestrutura adequada”, diz Adriana Reis. Para a psicóloga, deve existir o reconhecimento dos seres humanos que estão se arriscando para salvar vidas. “(A morte) ainda se apresenta como um grande desafio aos profissionais da saúde, muitos não tiveram o devido preparo para presenciar tantas perdas”, desabafa.
A pandemia está mantendo o país na crise social e econômica atual e isso influencia na alta das taxas de pobreza, fome e desemprego. De acordo com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), entre agosto de 2020 e fevereiro de 2021, mais de 17 milhões de brasileiros voltaram à extrema pobreza. O dado leva em consideração o indivíduo que ganha menos de duzentos e quarenta e três reais ao mês. Em agosto, a população pobre era cerca de 9,5 milhões de habitantes, em fevereiro desse ano passou para 27,2 milhões.
A falta de vagas nas empresas, em razão do fechamento de grandes fábricas e multinacionais tem contribuído com o quadro. Com a diminuição da oferta dos produtos industrializados aumenta a demanda. Por isso, o preço dos alimentos tem ficado cada vez mais caros e inacessíveis. Para a economista Loraine Statut, as classes mais baixas foram as mais afetadas. Com a taxa de desemprego na casa dos 14,3 milhões de cidadãos, os trabalhadores optaram pela informalidade.
Esses empregados informais “já ganhavam menos para poder trabalhar, aceitando menores salários do que seria o normal.” Não houve opção. “Para eles poderem sobreviver, eles foram obrigados de alguma forma a saírem para fazer algum tipo de serviço, tornando-se mais vulneráveis”, conclui. É um enredo sem fim, como um ciclo que sempre reinicia-se. A esperança por dias melhores perde espaço para a falta de informação, impedindo que o país vença a pandemia e prospere.