Proposta que permitiria ao Congresso suspender processos contra parlamentares é arquivada após críticas de juristas e especialistas e histórico de impunidade.
Amanda Talita
A PEC da Blindagem, que permitiria ao Congresso interromper processos criminais contra deputados e senadores, foi rejeitada hoje pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, com votação unânime de 26 votos contrários e nenhum favorável. Com o resultado, o regimento determina que a proposta seja arquivada. A PEC será encaminhada à Secretaria-Geral da Mesa, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), deve formalizar o arquivamento após a abertura da sessão.
A proposta, aprovada na Câmara em dois turnos com forte apoio do centrão e da direita, estabelecia regras que, na prática, ampliariam consideravelmente a proteção legal de deputados, senadores e presidentes de partidos. Pelo texto, qualquer ação penal contra esses parlamentares dependeria de autorização prévia do Congresso, em votação secreta, o que poderia criar obstáculos significativos para investigações e dificultar a responsabilização judicial de congressistas.
Além disso, a PEC ampliava o foro privilegiado, incluindo presidentes nacionais de partidos com representação no Legislativo, o que significaria que determinados políticos só poderiam ser processados diretamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dificultando a atuação de tribunais e promotores em casos de crimes comuns.
Adicionalmente, a ideia era estabelecer regras que poderiam postergar ou impedir prisões de parlamentares: no caso de prisão em flagrante por crime inafiançável, os autos deveriam ser enviados ao Congresso em até 24 horas, abrindo uma janela para que o parlamentar conseguisse autorização para evitar a detenção. Medidas cautelares como bloqueio de bens, uso de tornozeleira eletrônica ou afastamento do cargo ficariam condicionadas à decisão do STF, reduzindo a efetividade das investigações e da aplicação de punições imediatas.
Entre as vozes jurídicas que se manifestaram contra a PEC da Blindagem está a do advogado e ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo que afirmou que a proposta “não é só inconstitucional, é triste”, pois cria um mecanismo de autoproteção incompatível com a democracia. Para ele, o texto aprovado na Câmara não tem relação com a ideia de imunidade parlamentar prevista na Constituição, que serve para proteger a liberdade de expressão e de voto dos congressistas, mas sim com uma “intocabilidade” que permitiria blindar deputados, senadores e até presidentes de partidos contra processos judiciais, inclusive por crimes cometidos antes do exercício do mandato.
Cardozo classificou a medida como “uma afirmação da impunidade” e lembrou que a tramitação acelerada da PEC, com aprovação em dois turnos em curto espaço de tempo, mostra o caráter oportunista da proposta e a tentativa de reduzir a capacidade de reação da sociedade civil. Segundo ele, o Congresso precisa discutir pautas que fortaleçam o sistema de Justiça e a transparência pública, e não criar “castas acima da lei”.
A aprovação da PEC da Blindagem gerou forte repercussão não apenas entre juristas e parlamentares, mas também nas redes sociais, onde rapidamente se tornou alvo de críticas e debates. O jurista Marlon Reis, criador da Lei da Ficha Limpa, classificou a proposta como “um gigantesco retrocesso para a democracia”, ressaltando que os parlamentares já contam com prerrogativas suficientes e que o texto ampliava de maneira desproporcional os mecanismos de proteção.
No Senado, o relator Alessandro Vieira (MDB-SE) foi ainda mais duro ao classificar a PEC como “abrigo para criminosos” e apontar um “desvio de finalidade” no projeto. Em entrevista à CNN Brasil, afirmou que muitos parlamentares “não sabem o que estão votando”, o que revelaria, segundo ele, “profunda irresponsabilidade”. Suas declarações repercutiram imediatamente nas redes, onde a hashtag #PECdaBlindagem figurou entre os assuntos mais comentados. Internautas acusaram o Congresso de legislar em causa própria e criticaram a falta de transparência, principalmente no ponto que previa votação secreta para abertura de processos.
A pressão também atingiu parlamentares que haviam apoiado a proposta na Câmara. Vários deputados passaram a se justificar publicamente e alguns chegaram a reconhecer arrependimento pelo voto. Nas redes sociais, multiplicaram-se postagens de eleitores marcando perfis de deputados e senadores, exigindo explicações e ameaçando retaliação nas urnas. Para analistas, esse movimento digital escancarou o desgaste da imagem do Legislativo em um momento de baixa credibilidade da política.
A insatisfação não ficou restrita ao ambiente virtual. No domingo, 21 de setembro de 2025, milhares de pessoas ocuparam as ruas de mais de 30 cidades brasileiras para protestar contra a PEC da Blindagem e também contra a proposta de anistia a golpistas. Em São Paulo, a Avenida Paulista foi tomada por uma multidão estimada em 42 mil pessoas, segundo o Monitor do Debate Político do Cebrap em parceria com a ONG More in Common. No Rio de Janeiro, a praia de Copacabana reuniu número semelhante, cerca de 41,8 mil manifestantes. Os atos tiveram ainda a participação de artistas e figuras públicas como Daniela Mercury, Wagner Moura, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico César, que se somaram à população no repúdio à proposta.
Em Salvador, a mobilização assumiu um tom mais festivo. Em cima de um trio elétrico, Daniela Mercury conduziu a manifestação acompanhada de artistas como Wagner Moura, Cortejo Afro, Baco Exu do Blues, Nanda Costa e Lan Lahn. A caminhada pela Avenida Oceânica foi descrita pelos organizadores como um “carnaval da democracia”, reunindo milhares de pessoas em um ato que mesclou cultura, música e política para protestar contra o projeto.
Com a rejeição unânime na CCJ, a PEC da Blindagem está efetivamente arquivada e não seguirá para votação no plenário do Senado. Caso fosse aprovada, teria aberto caminho para alterações na Constituição, potencialmente impactando a atuação do Judiciário e do Ministério Público no acompanhamento de parlamentares.