Os tecidos são tão saturados com índigo que deu o nome de “homens azuis” aos Tuaregue. A técnica é proposital e chega a perfumar.
Ester Leite
A cidade de Kano, que fica na Nigéria, comporta em seu território muitos tanques históricos de tintura a base de índigo, cor retirada de plantas indigoferas e abundante no continente. As peças confeccionadas a base desta tinta natural têm grande valor cultural para a população, principalmente aos comerciantes locais que agora sofrem o risco de pararem suas produções.
A possibilidade dos tanques fecharem se dá pela presença de ações militares, demolições de locais históricos pelo próprio governo com a justificativa de modernização e a concorrência estrangeira com peças mais baratas e modernas.
A segurança da cidade influencia o comércio local que era forte e vem diminuindo por causa da presença dos militares radicais islâmicos do Boko Haram, um dos mais perigosos grupos da atualidade.
Segundo o Acervo da África- Memória Arte e Cultura, as tinturas na tonalidade quase preta são notáveis e Kano era um grande centro desse tipo de tintura no século XIX, de onde provinha as exportações dos tecidos pelo Saara até Tombuctu e a África do Norte.
Segundo a mestre em têxtil e moda e professora na UNISO, Aymê Okasaki, esse tipo de tingimento se expandiu no século XI, juntamente com o cultivo do algodão. No século XV surgiu a organização das estruturas tintureiras fixas, como os poços de tingimento. E em Kano ainda funcionam poços de 1498.
Vale lembrar que outras regiões e grupos produzem tecidos tintos em índigo, como na Nigéria, mudando um pouco o processo. Sobre isso Aymê diz que “os Tuareg nômades que vem do Saara para a cidade de Kano possuem tecidos distintos dos iorubás, por exemplo. Mas é nesses contatos que os tecidos também são comercializados (e modificados) localmente e também de maneira macro.”
Aymê ainda fala sobre a ligação da produção com tradições sacras, religiosas e culturais diversas, citando algumas pesquisas de Dunkan Clarke. “As mulheres iorubás referenciam a divindade feminina Iya Mapo, para que todo o processo ocorra de acordo. Determinadas estampas iorubás, feitas com o tingimento índigo, também recebem nomes de divindades, como a estampa Olokun, divindade dos oceanos”, explica. Estes deixam o tingimento fermentar na planta indigofera durante muitos dias para que a tonalidade fique quase preta.
“Na cosmogonia iorubá, os diferentes tons dos tingimentos são tecnologias materiais de seis pássaros sagrados. A ave Agbe mergulhou em um tanque de índigo, tendo sua plumagem um tom de azul. A divindade Orunmila, inspirada pelas plumagens dos pássaros, teria produzido os primeiros tecidos tingidos e estampados, quando as civilizações na Terra ainda estariam se formando”, ressalta. Além disso, textos escritos do Alcorão nos tecidos índigo são encontrados entres os mulçumanos haussás.
Kano foi um centro tintureiro de índigo. No século XIX eram exportados os tecidos produzidos pelos Haussás, pelo Saara, a região de Tombuctu e África do Norte. Isso possibilitou a expansão do tecido.
De acordo com Aymê “a produção de Kano, em especial de Kofar Mata mantém algumas características específicas: primeiro a utilização dos tecidos produzidos artesanalmente na região, o processo de reserva (amarrações com fios de ráfia, algodão ou mesmo seda, para isolar áreas que o pigmento não deva entrar, formando padronagens, para em seguida o tecido ser colocado no poço de tingimento por dias, fermentando e ficando mais escuro), a utilização de todos os equipamentos para o tingimento feitos localmente (agitador para os poços, cinzas de lenha, potássio e matérias-primas locais) e o processo de batimento do tecido (Bugu) com madeira para dar brilho ao tecido.”
Ações são necessárias para a preservação da prática. A produção vem sendo afetada principalmente pela concorrência de tingimentos artificiais e mais baratos importados, conflitos bélicos no norte da Nigéria pelo grupo Boko Haram e tecidos variados que vêm substituindo o índigo.
A mestre cita algumas ações que ocorreram no país e outras regiões que foram importantes na preservação do índigo, como o artista Nike Davies-Okundaye, que trouxe de volta a tradição do índigo das mulheres iorubás para as artes plásticas, construiu assim uma relação com os artistas nigerianos e estrangeiros europeus. Além disso, desenvolveu centros de exposição e ensino das técnicas para outras meninas. “As galerias Nike são importantes na Nigéria, tanto como centros de ensino, quanto como galerias de arte de reconhecimento mundial”, diz.
A estudiosa ainda salienta sobre as ações estatais, como as escolas públicas de ensino fundamental e médio irão adotar o tecido adire, com o índigo em seu tingimento nos uniformes. Porém, medidas protetivas marcadas no passado não foram eficazes, como entre 1880 e 1925, a grande entrada de tecidos de algodão e outros produtos, produtos que não eram taxados, concorriam com a fabricação local artesanal, estes, tributados pela administração colonial.
Já em 1977, a Nigéria independente, com o objetivo de proteger a produção interna, aplicou decretos proibindo importações de bens de luxo, como tecidos da Europa, porém os produtos continuaram a entrar no país de forma ilegal, o que gerou uma rede de comércio ilegal complexa de tecidos. “Os têxteis que eram apreendidos pela polícia eram queimados, com jornais da época noticiando as “fogueiras de wonyosi”. Ou seja, o estado precisa de medidas de valorização desta produção, e não necessariamente da proibição de importações”, conclui Aymê.