A sociedade tem se tornado mais inclusiva com os canhotos, apesar dos desafios históricos, culturais e práticos.
Vefiola Shaka
Apenas 10% da população mundial utiliza a mão esquerda para escrever, uma porcentagem que permanece estável há milhares de anos. Embora esse número seja relativamente baixo, o tema desperta vários debates, que vão desde a ideia de que as pessoas canhotas são mais criativas e inteligentes até crenças e estigmas negativos.
Viver em um ambiente criado para destros apresenta dificuldades com itens como tesouras, cadernos com espiral e até instrumentos musicais que demandam adaptações frequentes. Já no passado, ser canhoto trazia benefícios inesperados, especialmente em situações de combate, onde a imprevisibilidade de um ataque vindo da direção oposta poderia assegurar a vitória. Por outro lado, trouxe bastante dificuldade por conta de crenças ou pensamentos negativos.
A frequência do uso da mão esquerda está relacionada a fatores genéticos e ao processo de desenvolvimento do cérebro, mas ainda levanta questionamentos entre os cientistas. O que se reconhece é que os canhotos constituem um pequeno número significativo da diversidade humana.
O que determina a lateralidade?
Tiago Alves, professor e doutor em neurociência, explica que não há um consenso absoluto sobre os fatores que determinam se uma pessoa será destra ou canhota. A lateralidade envolve aspectos genéticos, ambientais e culturais. “A genética tem um papel importante, mas não é determinante, pois gêmeos monozigóticos que possuem o mesmo material genético mostram que um pode ser destro e o outro canhoto. Isso indica que não há uma concordância de 100%”, esclarece.
Ele destaca que, apesar de existir uma tendência hereditária, o ambiente também influencia. A cultura tem um papel significativo. Algumas pessoas são incentivadas a escrever com determinada mão, enquanto outras são forçadas a mudar. Se essa mudança ocorrer na infância, pode afetar a lateralidade da criança, impactando habilidades motoras e outras funções cerebrais. “Em alguns casos, o estímulo ao uso da mão não dominante pode até favorecer o desenvolvimento da ambidestria, o que tem benefícios para a conexão entre os hemisférios cerebrais”, afirma.
Por outro lado, Tiago menciona algumas possíveis vantagens dos canhotos. “Pesquisas indicam que crianças superdotadas apresentam uma proporção maior de canhotos em comparação com a média da população. Há também indícios de que a lateralidade menos assimétrica dos canhotos pode estar associada a um domínio da linguagem menos lateralizado no cérebro”, conclui.
Adaptação no dia a dia
Matheus Viana, jovem canhoto, convive muito bem com o fato de usar a mão esquerda para tudo, mas aponta algumas dificuldades cotidianas. “O principal problema é com a caneta. Ao escrever com a mão esquerda, a tinta pode borrar e sujar a mão, especialmente quando é líquida. Além disso, muitas ferramentas são projetadas para destros”, explica.
No aprendizado musical, ele enfrentou outro desafio. “Fui ensinado a tocar violão como destro, apesar de existirem músicos que tocam com o violão invertido. Hoje toco tanto violão quanto contrabaixo como destro”, conta.
No esporte, ser canhoto pode ser uma vantagem. “Jogo pingue-pongue no colégio e, como sou canhoto, meu saque costuma surpreender os adversários, já que eles não estão acostumados com uma jogada vinda da mão contrária”, relata. Essa inversão também pode ser um diferencial estratégico em outras modalidades esportivas.
Para ele, a adaptação constante faz parte da vida de um canhoto. “Como quase tudo é projetado para destros, precisamos encontrar soluções diferentes, o que pode afetar nosso estilo de vida. Usar mais a mão esquerda muda a forma como escrevemos, desenhamos e tocamos instrumentos”, reflete.
Uma realidade diferente
A experiência de Sérgio Strapassan, já na casa dos 50 anos, foi bem diferente. Na infância, ele enfrentou grandes dificuldades tanto na escola quanto na família. “Estudei em uma escola rural, em uma turma com alunos do primeiro ao quarto ano. Minhas professoras não queriam me ensinar a escrever com a mão esquerda, simplesmente não gostavam e me forçaram a usar a direita. Levei muitos puxões de orelha e até canetadas na cabeça”, relembra.
Essa imposição deixou marcas. Sérgio passou a odiar a escola e escrever. Durante o ensino fundamental, médio e até na faculdade, outra dificuldade foi a falta de carteiras adaptadas. “Era obrigado a me contorcer para conseguir escrever”, conta.
Dentro da própria família, ele também sofreu preconceito. A família do Sérgio é italiana e muito católica, e o seu avô odiava canhotos. “Fui pesquisar sobre isso e descobri que, para os antigos, ser canhoto era algo contra Deus. Existem até textos bíblicos que associam o lado esquerdo a algo negativo”, explica.
Apesar das dificuldades, na juventude, ser canhoto chamava mais atenção do que gerava preconceito. “As pessoas perguntavam como eu conseguia fazer as coisas com a mão esquerda. Eu sempre respondia: do mesmo jeito que vocês fazem com a direita”, brinca.
Mudanças e maior aceitação
Para Sérgio, a sociedade mudou bastante ao longo dos anos. “Hoje há mais medidas para garantir a igualdade de direitos aos canhotos. Muitos países já incluem proteções contra discriminação baseada na preferência lateral na legislação trabalhista”, comenta.
Além disso, as escolas adotaram abordagens inclusivas, oferecendo materiais adaptados e incentivando alunos canhotos a desenvolver suas habilidades sem restrições. “Essas mudanças mostram uma maior conscientização sobre a diversidade humana e a importância da aceitação”, conclui.
Embora desafios ainda existam, avanços significativos foram feitos para que canhotos tenham mais conforto e inclusão no dia a dia. A conscientização sobre o tema e o respeito às diferenças são essenciais para garantir que ninguém precise mudar para se encaixar em um padrão.