Série Xógum retrata relações conflituosas no Japão antigo que permanecem preocupações econômicas e políticas no Japão contemporâneo.
Paula Orling
A série de TV Xógum: a gloriosa saga do Japão passou a fazer muito sucesso a partir de sua estreia na Star+ e Disney+ no final de fevereiro deste ano. A série é uma adaptação do romance original de 1975 e a minissérie de 1980 e conquistou 9 milhões de visualizações em 6 dias, de acordo com levantamento da Variety. Na história, há interações entre os japoneses e os comerciantes portugueses, que revelam a interação dos nativos com os europeus, suas dificuldades de comunicação e a fusão de uma cultura com a outra.
Assim como no Brasil, a Companhia de Jesus teve papel direto na formação do Japão a partir de 1543, quando os portugueses chegaram ao país, liderados pelo Pe. Francisco Xavier. Neste sentido, o departamento de Formação Cristã do Colégio dos Jesuítas explica que em todos os lugares da Ásia por onde os jesuítas passaram a influência católica foi disseminada. “Os jesuítas desempenharam papéis cruciais na evangelização, educação e proteção dos povos locais, deixando um legado cultural e religioso duradouro”, elenca o Pe. Marco Antônio.
No âmbito linguístico, o padre descreve: “o contato entre eles e os portugueses resultou em uma relação simbiótica. Isso enriqueceu o léxico com termos relacionados à natureza, fauna, flora e cultura local”. Ele ainda menciona que muito do que se tem preservado da língua japonesa antiga foi por meio dos missionários católicos portugueses e, posteriormente, pelos comerciantes, personagens comuns em Xógum.
Conceito de convergência linguística
Os fenômenos de integração de duas línguas compõem a “convergência linguística”. A linguista Débora Zimmer descreve que a convergência “acontece quando duas culturas, com línguas diferentes, passam a conviver prolongadamente, utilizando jargões ou expressões na outra língua.” Além disso, crianças que desde cedo são educadas em um sistema bilíngue tendem a integrar expressões de uma língua na outra.
No Japão, os portugueses construíram escolas para educar as crianças nativas. Os processos de catequização e conversão implantaram aspectos da cultura europeia no país, como define o Prof. Dr. em História Moderna Edgar da Silva Gomes. Por isso, a língua e a cultura japonesas são diretamente afetadas pelo ocidente.
Restrições políticas no Japão
Desde as primeiras décadas de interação com europeus, os japoneses perceberam a necessidade de preservar a tradição, com medo de perder sua identidade nacional. Por isso, o Kampaku (regente) Toyotomi Hideyoshi expulsou, em 1587, os missionários cristãos do Japão, segundo Adeilson Nogueira em sua biografia sobre o personagem histórico.
Além da limitação político-religiosa, o Japão também adotou medidas econômicas como forma de manter a tradição. O xogunato Tokugawa, estabelecido em 1603, instituiu a política de sakoku (鎖国), que significa “país trancado”. Apenas alguns portos, como o de Nagasaki, ficaram abertos para o comércio limitado com alguns países, como a China e a Holanda, enquanto os outros foram fechados,
Os portugueses foram excluídos do país após a Revolta de Shimabara, quando se suspeitava que os cristãos tivessem influenciado a rebelião. Embora a política de sakoku ainda não estivesse totalmente implementada no período retratado em Xógum, a série descreve as atitudes japonesas em relação ao controle sobre os estrangeiros e a tentativa de minimizar sua influência na sociedade japonesa, que já se alastrava.
Logo o Cristianismo passou a ser proibido no Japão durante cerca de 200 anos. Neste sentido, a Embaixada do Japão no Brasil diz que, quando a política de isolamento foi derrubada, “mais de 30 mil cristãos ‘ocultos’ se declararam abertamente; eles pertenciam a grupos que se reuniam para reuniões clandestinas durante mais de 200 anos de perseguição.”
Relação entre o Japão e países estrangeiros na atualidade
Mesmo com a globalização, a embaixada informa que “o Cristianismo no Japão é ainda considerado por muitos japoneses como religião de estrangeiros.”. Este fato se dá especialmente pela forma conflituosa pela qual a religião foi apresentada ao país.
Mesmo assim, alguns termos do léxico cristão são amplamente divulgados no Japão, já que a convergência linguística não encerrou com as transações comerciais do passado, mas continua ativa por meio das redes sociais, do cinema e da interação entre nativos, turistas e imigrantes.
Samantha Simões é de família portuguesa, nasceu nos Estados Unidos e hoje vive no Japão. Ela afirma que a cultura japonesa tem muitos elementos em comum com a portuguesa. Ela concorda que mesmo no vocabulário há semelhanças e destaca algumas palavras da Língua Japonesa que soam muito como o português: “Pan” para “pão”; “botan“, que significa “botão”; “konpeitō” é um tipo de doce japonês que vem do português “confeito”; e a palavra “tenpo” é usada na música para significar ritmo.
Iniciativas governamentais para a preservação da cultura tradicional
Este cenário de integração entre os países, construído séculos atrás e perpetuado ao longo dos séculos, leva o governo a questionar os impactos da globalização. O Prof. Dr. em Sociologia pela USP e Me. em Língua Japonesa Wataru Kikuchi explica que a convergência política e cultural “está na base das relações sociais”. Por isso, para preservar a tradicionalidade, o governo busca estabelecer regulamentações para manter a identidade nacional.
Ele destaca que uma das primeiras regulamentações neste sentido da era contemporânea é a Lei de Proteção aos Bens Culturais, criada em 1950. Esta lei foi criada para proteger e preservar bens culturais tangíveis e intangíveis. Inclui edificações históricas, obras de arte, festivais tradicionais, artes performáticas, artesanato e costumes.
Além disso, é de praxe para o governo e autoridades locais apoiarem a realização de festivais tradicionais (matsuri) que celebram eventos históricos, folclore, a língua nacional e rituais religiosos, promovendo a continuidade dessas práticas. Em 2019, por exemplo, a cidade de Takayama recebeu aproximadamente 20 milhões de ienes para a realização do Takayama Matsuri, um dos festivais mais importantes do país, de acordo com o relatório anual da Agência de Assuntos Culturais do Japão (Bunka-chō).
Monumentos e festivais não são os únicos aspectos culturais a receberem recursos governamentais, segundo a agência. Os indivíduos designados como “Tesouro Nacional Vivo” recebem um subsídio anual do governo japonês. Este subsídio é de aproximadamente 2 milhões de ienes (cerca de 18.000 dólares) por ano, além de financiamento adicional para atividades educacionais e de divulgação.
Intervenções econômicas sobre a influência estrangeira
Além de promover a tradição, o Japão também usa uma abordagem protecionista para evitar a globalização completa de seu território e de sua população. O Japão possui regulamentações que controlam os investimentos estrangeiros, especialmente em setores considerados sensíveis para a segurança nacional e a economia do país.
O Ministério da Economia, Comércio e Indústria (METI) desenvolveu uma série de leis que regulam a participação de empresas estrangeiras em território nacional. No passado, estas regulamentações eram mais severas, como a Lei de Investimento em Empresas e Estabelecimentos Comerciais Estrangeiros, de 1949.
Com o passar dos anos, percebeu-se a necessidade de, aos poucos, abrir o comércio, adentrar no liberalismo, mesmo com o intuito de incentivar e perpetuar as tradições do país. Por isso, em 2019 foi promulgada a Lei de Promoção de Investimentos Estrangeiros, que busca equilibrar os investimentos estrangeiros no país, ao passo que investe na cultura local. Assim, a ideia de integração cultural da série Xógum, que começou há cinco séculos, se desenvolveu e permanece uma questão de preocupação para o governo japonês na atualidade.