Especialistas comemoram a conquista e reforçam a importância de um tratamento multidisciplinar para lábio leporino.
Gabrielle Ramos
O presidente Lula sancionou uma lei que torna obrigatória a cirurgia para tratar lábio leporino ou fenda palatina pelo Sistema Único de Saúde Brasileiro (SUS), por unidades públicas ou conveniadas. Além disso, também prevê tratamento gratuito com fonoaudiólogo, dentista e psicólogo.
Causa dessas condições
O cirurgião bucomaxilofacial, Fernando Morando, explica que as duas condições se estabelecem na vida embrionária intra-uterina, entre a quarta e sétima semana de desenvolvimento fetal. O lábio leporino acontece quando há uma abertura no lábio superior, que vai da base do nariz até a parte de baixo do lábio, podendo aparecer de um lado ou nos dois.
Já a fenda palatina é determinada por uma interrupção da continuidade dos tecidos do céu da boca, o que pode afetar músculos e ossos. Isso faz com que a boca e o nariz fiquem ligados, formando uma única abertura. Essa condição pode aparecer sozinha ou em conjunto com o lábio leporino.
Tratamento multidisciplinar
O tratamento para essas condições é cirúrgico e envolve uma equipe multidisciplinar. Segundo o cirurgião bucomaxilofacial, a primeira intervenção costuma ser realizada de forma precoce, entre 3 e 6 meses de vida. A correção do lábio leporino nesse período garante, na maioria dos casos, um bom resultado estético e funcional, com cicatrizes que podem se tornar quase imperceptíveis ao longo do tempo.
O processo, no entanto, não se encerra neste momento. A fase intermediária ocorre em dois momentos distintos. A primeira cirurgia nesta etapa acontece entre os 9 e 18 meses de idade e tem como foco o fechamento do palato, o céu da boca, essencial para permitir o desenvolvimento adequado da fala e evitar o refluxo de alimentos e líquidos para a cavidade nasal.
Já a segunda cirurgia, entre os 7 e 9 anos, tem como objetivo melhorar a formação óssea. Por meio de um enxerto ósseo, é possível garantir o correto alinhamento e posicionamento dos dentes. “Estas fases são mais complexas que a inicial, melhoram muito a qualidade de vida e devolvem a oportunidade de melhor comunicação pela fala e efetividade na função mastigatória e deglutição”, explica Fernando.
Além disso, existe uma fase final, que nem sempre é necessária, mas pode ser indicada para adolescentes ou adultos. Trata-se da cirurgia ortognática, indicada para melhorar a estética e a harmonia facial, além de proporcionar o encaixe correto entre as arcadas dentárias, fundamental para a função mastigatória.
Fernando explica que o tratamento também envolve cuidados complementares, como a fisioterapia, que atua no treinamento muscular para o desenvolvimento de movimentos que antes não eram possíveis. Outro exemplo é o acompanhamento odontológico, que permite o encaixe adequado dos dentes, indispensável para que a mastigação seja eficiente e confortável.
Saúde mental
Além dos aspectos físicos, essas condições e seus tratamentos também podem trazer desafios emocionais. “A maneira como a pessoa interage com o mundo e como o mundo a enxerga pode influenciar sua autoestima, confiança e bem-estar”, explica a psicóloga infantil e analista de comportamento, Marina Mellone.
Isso acontece porque desde a infância uma criança pode sentir que é vista de forma diferente, o que consequentemente pode impactar suas experiências sociais e levar ao afastamento ou até mesmo afetar a autoconfiança na vida adulta. “É por isso que o suporte psicológico é tão necessário, para ajudar a pessoa a desenvolver ferramentas emocionais e sociais que permitam que ela se enxergue além da condição física e viva com mais segurança e qualidade de vida”, garante a psicóloga.
Durante o processo cirúrgico, a psicóloga destaca que as terapias são fundamentais para reduzir o risco de adoecimento psicológico, como o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos. Além disso, ajudam a oferecer formas alternativas de comunicação, evitar a criação de expectativas irreais e garantir um acompanhamento constante.
Importância para o SUS
Fernando também atua como cirurgião no Estado de São Paulo há 25 anos e acredita que o SUS tem capacidade para absorver a demanda de pacientes da nova lei. No entanto, reconhece que se trata de um projeto de difícil execução. Na visão dele, seria necessário criar centros multidisciplinares específicos dedicados a esse tipo de atendimento. Além de treinamento especializado, remuneração atrativa e novas contratações de profissionais de áreas que não integram oficialmente as equipes do SUS, como ortodontistas.
O cirurgião avalia que a redução da participação do Governo Federal no repasse de recursos ao SUS obrigou estados e municípios a aumentarem seus gastos com a saúde, tornando a solução dessa equação ainda mais complexa. “Esses pacientes necessitam de tratamento efetivo pois os prejuízos são enormes sob o ponto de vista psicológico, social e da saúde. A dúvida é: o país oferecerá condições de executar o projeto de forma plena?”, questiona.
Para a psicóloga, a aprovação da nova legislação traz à tona uma discussão ainda mais ampla, a necessidade desse tipo de acompanhamento não apenas nesses casos, mas em qualquer condição de saúde. “A inclusão desse acompanhamento não é um benefício extra, é uma necessidade urgente”, garante.
Isso acontece porque os impactos emocionais negativos podem se acumular, resultando em quadros de ansiedade, depressão e isolamento social. Além disso, a adaptação torna-se mais difícil, e muitas pessoas acabam deixando passar oportunidades por medo da rejeição “O acompanhamento psicológico não deve ser visto como algo opcional, mas sim como uma ferramenta essencial para garantir o bem-estar de qualquer pessoa que precise enfrentar desafios físicos ou emocionais”, reforça Marina.