Saga de Duna, escrita por Frank Herbert, mostra superação das máquinas e da inteligência artificial em favor da humanização dos processos.
Paula Orling
Areia, olhos azuis, trajestiladores… talvez seja assim que se imagine o universo distópico de Duna. Em uma sociedade futurística, as tecnologias são necessárias para viver, especialmente no planeta Arrakis – árido, quente, com água escassa e cheio de especiaria, a maior fonte econômica do universo. Com certeza a sequência desta narrativa foi uma das mais aguardadas de 2024. Duna 2 já fechou sua terceira semana em cartaz com US$494 milhões nas bilheterias de todo mundo.
A história de Duna se passa 23 mil anos no futuro. A Terra deixou de ser o lar dos humanos e passou a ser um parque de preservação ambiental. As pessoas passaram a viajar pelo universo e se estabelecer em novos planetas.
Tanto os livros quanto os dois filmes já lançados contam a história do protagonista Paul Atreides – interpretado por Timothée Chalamet. Paul é filho do duque Leto Atreides, líder do planeta Caladan. A família Atreides é enviada para supervisionar o planeta Arrakis e é ali que o protagonista começa a desenvolver mais completamente suas habilidades acima da média humana.
Neste tempo, os equipamentos são abundantes, mas algumas perguntas não querem calar quando se tem contato com a trilogia pela primeira vez: onde estão os celulares, computadores e televisões? De que forma a história da humanidade caminhou para que a inteligência artificial seja inexistente?
Tecnologias limitadas em Duna
Um olhar superficial pode sugerir que esta realidade se dá pela velhice da história. O primeiro livro da trilogia foi lançado em 1965 e, claro, o escritor Frank Herbert não fazia ideia de como o mundo estaria em 2024. Ele não tinha conhecimento sobre smartphones, tecnologias ativadas por comando de voz ou a implementação de inteligência artificial mesmo de alunos do Ensino Médio.
É possível que a democratização destas tecnologias fosse uma ideia muito distante da sua imaginação. Assim, é lógico que o universo distópico de seus livros não apresentasse elementos desconhecidos por ele.
Esta seria uma linha de raciocínio plausível se não fosse por um acontecimento fictício descrito na trilogia. Herbert cita o “Jihad Butleriano” já em seu primeiro livro, que teria acontecido 10.000 anos antes da existência de Paul Atreides. Este evento teria acontecido entre os anos 201 e 108 B.G. (antes da união de todos os planetas sob o governo econômico unificado da Guilda).
Jihad Butleriano
No primeiro momento é impossível para o leitor de Duna de primeira viagem entender o que significa a guerra que também é chamada de Grande Revolta. Entretanto, ao longo da narrativa, entende-se que o Jihad Butleriano nada mais é do que uma revolta contra as inteligências artificiais.
A palavra jihad foi apropriada do árabe e significa “luta” ou “esforço”. Além disso, é um dos cinco pilares do Islamismo. Representa a ideia de que defender Alá deve ser o objetivo de todo mulçumano, mesmo que seja alcançado pela luta armada.
Esta ideia explícita está presente em, pelo menos, 164 versos do Alcorão. Um deles está na Surata Bácara (Vaca), versículos 190-195: “[2.190] … combatei, pela causa de Deus, aqueles que vos combatem…[2.191] Matai-os onde quer se os encontreis e expulsai-os de onde vos expulsaram, porque a perseguição é mais grave do que o homicídio. Não os combatais nas cercanias da Mesquita Sagrada, a menos que vos ataquem. Mas, se ali vos combaterem, matai-os. Tal será o castigo dos incrédulos.”
É interessante pensar que o autor escolheu esta definição para explicar a grande revolta dos humanos contra as máquinas em sua projeção futurística. Ao juntar este termo com as ideias de Judith Butler, ele cria uma crítica social.
Butlerismo
Butler defende o feminismo, o antirracismo e o antissionismo, ideias que Herbert incorpora na ideia do Jihad Butleriano. Esta revolta se estabelece contra a condição de servitude que as máquinas colocam os humanos, assim como Butler defende a luta contra os dominadores dos diferentes nichos sociais.
Durante duas gerações da história ficcional do universo de Duna, as pessoas viveram sob o caos do Butlerianismo, quando as máquinas controlavam as interações sociais. A partir de todo o sofrimento, os planetas buscaram a seguir o ideal “a humanidade não deve ser substituída”.
Por isso, os humanos investiram em uma grande cruzada contra as máquinas, IAs e todas as formas racionais não-pensantes, que durou quase um século. Os humanos empenhados em destruir qualquer tipo de tecnologia pensante foram chamados de “butlerianos”. Eles foram bem-sucedidos e, assim, Frank Herbert criou um universo ficcional diferente do qual a Terra está envolvida.
A alternativa ficcional para a IA em Duna
Ao longo da trilogia, Herbert desperta alternativas para o uso da IA. As máquinas não foram extintas do universo de Duna, mas todas precisam de um controlador humano para funcionarem. Por isso, “mentats” são treinados. Eles são humanos que ingerem substâncias para que suas faculdades mentais sejam refinadas. Por isso, o raciocínio lógico e a percepção destas pessoas são altamente apurados.
Eles representam “computadores humanos”, capazes de calcular com a mesma agilidade da inteligência artificial. Mas, ao contrário das máquinas, acrescentam à sua matemática a emoção, que se mostra necessária na saga para torná-los mais importantes para seus líderes.
Este conceito de “computadores humanos” não aparece apenas na narrativa de Duna. Tanto no livro quanto no filme “Estrelas além do tempo” contam a história de mulheres afro-americanas matemáticas da NASA que surpreendem uma sociedade racista com sua capacidade. Nesta narrativa da autora Margot Lee Shetterly, vê-se a ideia de transformar pessoas em máquinas independentes, capazes de raciocinar como máquinas, mas sentir como humanos.
Além dos “mentats”, os navegadores da guilda também exemplificam o retorno da valorização da humanidade. Estes humanos recebem treinamento desde muito jovens para substituírem as máquinas que, antes do Jihad Butleriano, comandavam as viagens espaciais
Existe, contudo, um paradoxo na existência dos navegadores da guilda. Apesar de serem humanos gerindo operações computacionais, o autor mostra a perda da humanidade desses personagens. Para realizarem suas funções de máquinas humanas, ingerem altas quantidades de especiaria, que se torna um narcótico. O componente faz com que, pouco a pouco, se transformem em vermes gigantes, os criadores da commodity universal.
Mudança social causada pelo Jihad Butleriano
No universo de Duna, o Jihad Butleriano causou um grande impacto social, especialmente nos âmbitos político e religioso. Antes desta revolta, os planetas eram laicos. Contudo, líderes religiosos passaram a fazer uso da tecnologia para manipular as massas no sentido político. Esta é uma crítica clara ao presente, quando padres, pastores, monges, rabis, mestres e bispos usam artifícios para controlar os povos de acordo com seus interesses.
Após este movimento, decidiu-se que os líderes religiosos não manipulariam a realidade mais. Por isso, dentro de uma visão ecumênica, a sociedade criou princípios comuns às principais religiões, descritos na “Bíblia Católica Laranja”. Existem também instituições de governo universais, como o poder da guilda e do próprio imperador, mas o verdadeiro poder está nas mãos dos religiosos.
Para controlar a interação dos mundos com a religião, a decisão foi definir um grupo de pessoas neutras, as “Bene Gessetit“. Sendo todas mulheres, o maior objetivo do grupo é preparar mitologias que permitam a crença em um “Kwisatz Haderach”, um tipo messiânico. Quando percebem que uma sociedade está pronta para receber este elemento mitológico, elas criam uma pessoa que se encaixa nos padrões e, mais uma vez, este líder religioso manipulava a política por ser influente entre as massas. O ciclo de manipulação de massas continua, apenas com um rosto diferente.
Além do poder religioso, as Bene Gesserit detém os registros históricos dos planetas. Por não confiar mais nas tecnologias para guardar dados, a humanidade volta a se apoiar nos registros físicos e mentais sobre os acontecimento. Estas mulheres recebem o título de “guardadoras da história”.
Resultado do afastamento das tecnologias
Atenção, porque aqui vai spoiler!
Ao final de toda a saga de Duna, Herbert mostra como a busca pelo progresso a qualquer custo corrói o ser humano. Ele representa o anseio pelo desenvolvimento sem limites como forma de opressão. Para ele, o resultado do afastamento do mundo acelerado da atualidade é o encontro com a natureza, família e, finalmente, felicidade.