A comercialização desse tipo conteúdo divide opiniões entre as vítimas
Lucas Pazzaglini
O crescimento de filmes e séries baseadas em tragédias reais, como a série “Todo Dia a Mesma Noite: O Incêndio da Boate Kiss“, tem levantado questionamentos com relação à relevância que é dada aos casos e as denúncias que esses produtos podem apresentar. Dividindo muitas opiniões, principalmente entre os afetados pela tragédia, a série da Boate Kiss estreou em primeiro lugar na Netflix, no começo de fevereiro.
A recepção pelo público foi grandiosa devido, principalmente, à curiosidade sobre o caso que aconteceu a 10 anos. Ediane Falcão, estudante de Enfermagem, é um desses exemplos. “Eu assisti para saber como e porque tudo aconteceu”, conta. Ela ainda acrescenta que muitos fatos da tragédia, como a falta de prisioneiros e culpados, eram desconhecidos para ela até ver a série.
Logo que o seriado foi lançado, parte dos pais das vítimas se posicionou a favor, afirmando que seria uma forma de lutar contra o esquecimento da tragédia. O diretor jurídico da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Paulo Carvalho, chegou a emitir uma nota em que declara a série como uma forma de “denúncia contra a impunidade”.
Alice Mendonça, estudante de Direito, tinha 11 anos na época da tragédia e conta que assistir à série a ajudou a ver a situação de forma mais humana e próxima. “Eu já sabia do terror que a tragédia da Boate Kiss era, mas a série me impactou muito ao demonstrar como a justiça foi ineficiente, desumana e injusta no pós julgamento”, relata.
O movimento contrário
Apesar da boa receptividade por parte dos fãs e familiares, um movimento contrário também surgiu. Sendo representadas pela advogada Juliane Muller Korb, cerca de 40 famílias abriram um processo contra a produção, acusando-a de comercializar a tragédia.
Outros pontos abordados pelas famílias são: a falta de consulta antes de realizar a série, a mistura entre fatos e ficção e o desencadeamento de gatilhos pelas lembranças. Esse movimento frisa também que não quer o esquecimento da tragédia, mas não aprova a forma que a série foi feita.
A ação judicial encabeçada pelo movimento contra a Netflix ainda não teve resolução, mas os pais não pedem indenização própria e sim a construção de um memorial da tragédia em Santa Maria. Além disso, apresentarão requisitos com relação a danos morais e sequelas médicas.
Outras formas de abordagem
Enquanto a série dividiu opiniões, o documentário “Boate Kiss: A Tragédia de Santa Maria” lançado pela Globoplay, na mesma semana, foi recebido bem pelos dois grupos de pais. O movimento que busca processar a Netflix evidenciou o desejo de manter a memória viva por meio de produções mais jornalísticas, o que foi cumprido durante a produção sobre a tragédia feita pela Globoplay.
Na obra, pais e familiares são entrevistados e ainda são apresentadas imagens de arquivos da tragédia, tornando tudo mais real e evidente. O documentário não é recomendado para todos os públicos por ter cenas muito fortes do ocorrido.
A doutora em Comunicação Andréia Moura ainda ressalta que optar pelo meio audiovisual nem sempre vai ser a melhor escolha para a representação de crimes ou tragédias. “Às vezes há outros caminhos e linguagens que atendam melhor ao problema. O audiovisual é o caminho com maior acesso e debate, mas isso não significa que é a melhor plataforma”, explica Andréia.
Ela ainda comenta que existem muitos filmes e séries que são produzidos com a premissa de denunciar um determinado crime ou tragédia, mas fogem totalmente do prometido, apenas pensando no comercial. “Alguns produtos acabam apresentando o crime de uma forma completamente sensacionalista, pouco esclarecedora, com um viés de reflexão muito pequeno, simplesmente para aguçar a curiosidade do espectador”, afirma.
Impacto no público
A forma que a tragédia foi exposta pelos dois produtos, apesar do desagrado de um grupo, abriu uma oportunidade de reflexão sobre o assunto e esclarecimento da tragédia. “A série trouxe a realidade à tona para todos e expôs a falta de justiça”, afirma Ediane, além de dizer que muitos detalhes sem atenção vieram à luz do público e causaram uma comoção geral.
Alice concorda com a afirmação, enfatizando a relevância de denúncias de crimes e tragédias via mídias televisivas e digitais. “Acredito demais na importância de divulgar em mídias sobre os crimes no geral, sobre a justiça aplicada e na visualização da humanidade que existe ali. Isso promove uma catarse importante e denuncia as milhares de possibilidades de tragédias nos dias de hoje”, encerra a estudante.