Como está o Rio Grande do Sul após um ano das chuvas que devastaram o estado.
Raíssa Oliveira
Um ano atrás, as piores enchentes da história do estado do Rio Grande do Sul deixaram 184 mortos, 25 pessoas desaparecidas e 2,4 milhões de pessoas afetadas de algum modo, seja pela perda de materiais, impactos na saúde ou pelo transtorno da logística. Além disso, quase 100 mil casas foram destruídas e 13,7 mil quilômetros de estradas atingidas no total.
Das 497 cidades do Rio Grande do Sul, 478 foram impactadas pelas chuvas, representando um total de 96% do estado gaúcho. As cidades mais afetadas foram Porto Alegre, Canoas, Eldorado do Sul e Roca Sales. Na capital gaúcha, o cenário foi especialmente crítico, tendo em vista que as chuvas fizeram com que o nível do lago Guaíba chegasse à marca histórica de 5,35 metros, ultrapassando a cota de inundação, que é de 3,60 metros.
Região metropolitana
Mesmo após um ano das enchentes, os gaúchos sentem as consequências das inundações e ainda buscam se reerguer, seja em aspectos financeiros ou psicológicos, como o caso de Ana Paula dos Passos. Ela vive em Canoas, área metropolitana de Porto Alegre, e precisou ajudar seus pais e familiares nas enchentes de 2024, além de também ser afetada pela falta de mantimentos e chuvas do estado.
No início das inundações, por morar em um apartamento pequeno, acolheu o pai e um dos irmãos, enquanto sua mãe e o outro irmão buscaram abrigo em um outro apartamento, que ficava situado próximo a companhias de gás. “Nessa mesma noite minha mãe já começou a mandar mensagem, que os botijões de gás estavam boiando na volta do condomínio e que as pessoas estavam desesperadas porque estava ocorrendo vazamento de gás e o cheiro estava muito insuportável, não dava mais para respirar”, lembra Ana Paula.
A sua mãe e irmão foram resgatados por voluntários em barcos e, após o resgate, também foram acolhidos em seu apartamento. “O local onde eu morava era em uma zona nobre do lado do shopping de Canoas e a água estava chegando, não chegou no meu apartamento porque o shopping virou piscina e os lojistas do térreo perderam muita coisa”, ela menciona.
Quanto ao resgate das demais pessoas, relata que muitos desabrigados foram acolhidos no seu condomínio e que os barqueiros que estavam ajudando no resgate de bairros alagados precisavam de ajuda para se guiarem nos bairros. Seus vizinhos serviram de guias, porém, ela não teve psicológico para ajudar desse jeito. “Tenho traumas do barulho do helicóptero, porque o helicóptero passava o tempo todo por cima do meu prédio, o tempo todo, resgate e sirene o tempo todo, parecia o fim do mundo, não tinha outra explicação. Aquele monte de animais na rua assim, desesperados, tiravam da água e largavam ali perto do meu prédio, não tinha ração para dar para todo mundo, uma coisa horrível”, declara.
A casa dos pais de Ana Paula foi condenada pela Defesa Civil e engenheiros da prefeitura, porque foi considerada imprópria para voltar. A casa era de madeira e alvenaria e a água do bairro demorou quase 30 dias para diminuir. Atualmente, eles vivem de aluguel em um local sem histórico de enchentes e financiado pelo benefício da prefeitura de Canoas para todas as pessoas que tiveram suas casas condenadas e possuem baixa renda. “Não conseguiram recomeçar, eles ainda têm medo de voltar. Embora eles estejam no mesmo bairro, eles não querem mais voltar para onde estavam, porque lá é mais no final do bairro, já tinha histórico de alagamento e, depois dessa enchente eles têm trauma”, comenta.
Além disso, eles receberam dinheiro do governo federal, mas conta que desconhecem o Pix prometido pelo governo do estado. Ela diz que “as pessoas foram ajudando, a solidariedade foi muito grande. A gente recebeu muita coisa, a casa dos meus pais foi praticamente toda mobiliada com doação e muitas famílias também receberam muita doação, porque o Pix do governo federal não era suficiente para mobiliar uma casa e recomeçar”.
Vale do Taquari
O Rio Taquari, que abastece o Vale do Taquari, situado no centro do estado gaúcho, atingiu 34 metros em 2024 e ultrapassou 21 metros acima da cota de inundação. Júlia Ribeiro era moradora de Estrela na época, mas trabalhava em Lajeado, e teve a sua rotina afetada pela enchente, já que ela transitava diariamente entre os dois municípios.
A ponte da BR-386, que liga as cidades, foi bloqueada e, pela dificuldade de deslocamento, Júlia escolheu mudar de cidade e residir definitivamente em Lajeado. “Uma semana depois a gente já tinha voltado às atividades normais, mas começou a questão de ônibus, porque a ponte estava mais pra lá do que pra cá e começou a trancar um monte porque eles estavam usando só um pedaço da ponte, eu saía seis horas e chegava em Estrela oito da noite, isso começou a me atrasar e a próxima coisa foi vir pra Lajeado e pegar ônibus aqui”, menciona.
Além desse transtorno, Júlia é professora e já havia sido transferida de local de trabalho por conta das enchentes de setembro de 2023, também muito significativas no Vale do Taquari. “Mandaram uma mensagem para evacuar o prédio lá da beira do rio, porque a previsão era dar uma enchente de novo na mesma proporção que a de setembro. Só que começaram a falar que ia ser maior, ia ser maior, mandaram um comunicado que todos os colaboradores estariam sendo liberados, principalmente quem precisasse cruzar a ponte, seja para Estrela ou para Arroio do Meio. Enchente aqui já era algo meio normal, chovia, tinha enchente, tudo certo, mesma proporção, mas não era uma coisa de se preocupar desse tamanho”, explica.
A ponte, bloqueada parcialmente desde setembro porque apresentava um risco de colapso, foi totalmente liberada após sete meses. Júlia reforça que “a logística ficou complicada, até um mês atrás a gente ainda estava vivendo essa coisa complicada da ponte, isso que já se passou um ano, porque eles começaram a mexer lá naquela ponte e daí achavam um pilar rachado e aí acontecia outra coisa e a ponte tava ruim, daí arrumaram a ponte de Arroio do Meio e caminhão batia nas cancelas, derrubava lá, aí tinha que trancar a ponte novamente”.
Estado segue sem estrutura para as chuvas
Antes de 2024, a maior enchente da história do Rio Grande do Sul havia ocorrido em 1941, uma marca significativa para o estado e foram necessárias três décadas para implementar o sistema de proteção contra enchentes de Porto Alegre, que tem 68 quilômetros de diques, 14 comportas e 19 casas de bombas para retirar o acúmulo de água. Após as enchentes do ano passado, que se tornaram a maior catástrofe registrada na história do estado, o sistema de proteção começou a ser revisado. Sendo assim, o governo federal investiu 6,5 bilhões de reais para modernizar o sistema metropolitano.
Mesmo depois de muito tempo, 400 pessoas ainda vivem em abrigos públicos. Ana Paula relata que “a maioria das famílias não voltaram para o bairro onde os meus pais moravam, o bairro está parecendo abandonado à noite. É uma escuridão. Muitas pessoas ficaram com medo de voltar novamente. Muitas casas abandonadas. Tem casas que não tiraram nem os móveis de dentro ainda depois da enchente, abandonaram do jeito que ficou. E é perigoso andar pelo bairro Rio Branco hoje, porque não tem mais movimento, não tem mais vida”.
Além disso, ela diz que qualquer chuva alaga o centro de Porto Alegre e que os lojistas não querem voltar mais porque acabam perdendo tudo toda vez que chove. “Os governantes não estão preocupados com as pessoas, as pessoas estão perdendo tudo, estão com medo e não há dinheiro, não tem dinheiro para fazer uma ação para conter essas águas da chuva, ao longo dos anos não foi feito algo pensando na estrutura das cidades para que o volume de chuvas fosse contido e hoje, atualmente, devido a todos esses anos de descaso, não se tem dinheiro para tomar medidas”, finaliza.
Crédito: Arquivo Pessoal/Ana Paula dos Passos