Giovanni Manzolli
“Carro no Brasil não se faz, se compra”. Essa foi a bronca ouvida por João Augusto Conrado do Amaral Gurgel de seu professor, na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). O então estudante apresentou o projeto de um carro popular no seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). O nome do veículo era “Tião”, bem sugestivo para um carro das massas, não acha?
Fato é que para se formar como engenheiro mecânico, Gurgel teve que refazer o trabalho e entregou o projeto de um guindaste para agradar o docente. Mas não houve questionamentos capazes de impedir a realização de seu grande sonho: criar uma montadora de carros 100% brasileira.
O caminho para o grande objetivo começou a ser trilhado por meio da produção de karts infantis, com motores monocilíndricos e capacidade para duas crianças. Foi assim que os recursos para a sua futura empresa foram angariados, durante 20 anos.
Carros revolucionários
Em 1969 foi finalmente fundada a Gurgel Motores, uma fábrica de carros totalmente nacional. O primeiro modelo começou a ser produzido em São Paulo capital, com o nome de Gurgel Ipanema. Aliás, não só a empresa pertencia à terra verde e amarela, mas os nomes dos carros eram brasileiríssimos. Muitos dos modelos receberam, inclusive, nomes de povos indígenas
O carro pioneiro da montadora de carros era um pequeno Bugre, com capota de lona e carroceria feita de plástico reforçado e fibra de vidro. Muitos dos componentes mecânicos eram do Fusca, como suspensão e o característico motor refrigerado a ar. Essas peças compartilhadas com a Volkswagen ajudaram a consagrar a confiabilidade desse e de outros vários carros da Gurgel, já que qualquer mecânico sabia fazer a manutenção, além de as peças serem baratas, duráveis e fáceis de se achar.
Quatro anos depois nasceu a segunda geração do Ipanema, agora com o nome de Xavante. Muito parecido com um Jipe, assim como o seu irmão mais velho, o foco do modelo era o desempenho no terreno fora de estrada. Com a criação do Xavante, João Gurgel registrou a patente de um novo tipo de chassi nomeado de Plasteel, cuja estrutura usava uma mistura de plástico e aço.
Para conseguir vencer os obstáculos das trilhas e ruas de terra, o Xavante trazia o Selectraction. Essa tecnologia funciona por meio de duas alavancas que freavam as rodas traseiras. Quando o motorista acionava a alavanca que travava a roda que estava patinando, o motor transferia toda a força para a roda que tinha aderência no solo, o que tirava o carro do atoleiro com muito mais facilidade.
O Xavante se deu tão bem que foi adotado pelo Exército Brasileiro, que comprou uma frota desses pequenos jipes. Nos anos seguintes surgiram seus derivados, os Gurgel X10 e X12. Veículos com versões civis.
Hoje fala-se muito sobre os carros elétricos serem o futuro do automobilismo. No Salão do Automóvel de 1974, a Gurgel apresentou o protótipo de um projeto ousado, o primeiro carro elétrico brasileiro: Gurgel Itaipu E150. O nome é mais uma homenagem ao Brasil e à própria usina hidrelétrica de Itaipu, no estado do Paraná.
O colapso de um sonho
Foram produzidas apenas 27 unidades do carrinho que levava duas pessoas, pesava 460 Kg, dos quais 320 Kg eram só de bateria. E nos modelos mais aperfeiçoados sua velocidade máxima era de 60 Km/h.
O Itaipu não foi produzido em linha por ter vários problemas, que são enfrentados pelos carros elétricos até hoje: pouca autonomia por carga, peso das baterias e baixa durabilidade.
Outro veículo elétrico da marca teve um pouco mais de sorte. Este foi o Gurgel Itaipu E400, um furgão elétrico que teve pequenas frotas adquiridas por estatais brasileiras de eletricidade. Ele tinha 11 cv de potência, 80 km de autonomia e as baterias precisavam de até 10 horas para serem totalmente carregadas. Características não muito atrativas para o mercado.
Em 1987 João Gurgel coloca a cereja no bolo. Ele realiza seu feito mais ousado e cria o CENA (Carro Econômico Nacional). O objetivo é que esse fosse o carro mais barato a ser vendido em território brasileiro.
O motor era bastante peculiar, pois era de origem Volkswagen, possuía dois cilindros, 650 cm³ (com 26 cv) ou 800 cm³ (com 32 cv), sempre refrigerados à água. Uma fake news se difundiu dizendo que era um motor de fusca cortado ao meio, mas não passava de balela. Apesar do compartilhamento de itens com a marca alemã, a mecânica foi pensada pela própria Gurgel. Isso fez desse o primeiro carro totalmente brasileiro.
O nome CENA precisou ser retirado do modelo devido a conflitos com a família do piloto brasileiro Ayrton Senna. No ano seguinte, o carro passou a se chamar BR800. O número se referia às cilindradas do motor, que foram otimizadas pela marca. O carrinho era muito barato, simples e funcional.
A campanha de vendas do novo carro foi robusta. Para adquirir o modelo, o comprador deveria se tornar acionista da Gurgel Motores S/A. O intuito era trazer capital para a empresa e aumentar a produtividade. O slogan da campanha se referia a um dos maiores nomes da história da indústria automotiva global: “se Henry Ford o convidasse para ser seu sócio, você não aceitaria?”.
Este, infelizmente, foi o último feito da marca. A Gurgel Motores declarou falência em 1994. Durante toda sua história a marca vendeu 40 mil carros. Mas, o que causou esse final trágico para uma organização que promoveu tantas inovações em seu segmento?
Bom, os produtos Gurgel começaram a ganhar notoriedade no mercado. Contudo, essa indústria já tinha dono, no Brasil. Um oligopólio de 4 empresas, não nacionais: Chevrolet, Fiat, Ford e Volkswagen. As 4 grandes estrangeiras se uniram contra a emergente brasileira e usaram seu capital político para provocar o esfacelamento da Gurgel.
A primeira ação desse Lobby da ruína foi a conquista da isenção de impostos para carros com motores até 1.0 ou motores refrigerados a ar, o que incluiu os motores boxer da Volkswagen. Com isso as montadoras trouxeram para o mercado carros para baterem de frente com o BR800 e destrona-lo como um carro urbano e super barato. Começava aí a enxurrada de modelos com motor de mil cilindradas. O pioneiro de maior sucesso foi o Uno da Fiat. O peso da concorrência foi impiedoso.
A Gurgel começou a empilhar os primeiros tijolos de uma nova fábrica no estado do Ceará, exclusiva para a produção do BR800, pois ele tinha fila de espera de um ano e necessitava de uma expansão em sua linha de produção. O plano das outras montadoras era sufocar o carrinho da Gurgel antes que a marca conseguisse produzi-lo em grande escala.
A segunda medida foi impor pressão sobre os fornecedores de auto-peças, para que não vendessem peças criadas para outros carros aos veículos da Gurgel. Isso prejudicou grandemente a marca, que sempre aproveitou peças de outras marcas, o que nunca tinha sido visto como um problema, até então. A partir daí, a Gurgel precisou gastar tempo e recursos projetando seus próprios componentes mecânicos.
Para que se construísse a nova fábrica no Ceará, João Gurgel conseguiu um empréstimo importante com o BNDES. Contudo, o bando atrasou sistematicamente a liberação dessa verba, devido à maracutaia das grandes montadoras.
Quando se referia à concorrência, João Gurgel dizia que sua empresa não era uma multinacional como todas as outras que faziam carros no Brasil, a dele era uma “muitonacional”.
O mais trágico é que o nosso governo se vendeu às empresas de outros países, ao invés de investir em um projeto totalmente brasileiro, que trouxe inovações e ideias revolucionárias para o mercado. Essa tragédia política se repete até hoje, não só no segmento automobilístico, mas em quase todos os setores industriais.
E aí, quais as contribuições inventivas, econômicas, tecnológicas e industriais do Brasil para a comunidade internacional? Bom, há muitas ideias boas aqui, o problema é a falta de investimento nos potenciais que acabam sendo sufocados pelo capitalismo voraz.