Essa não é uma história de superação

In Geral, Saúde
Natália Goes

Relacionamento abusivo e os traumas que não acabam quando chega o fim.

Helena Cardoso

Natália Goes tem 25 anos e atualmente cursa o segundo semestre de Jornalismo no Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). Quem a olha, percebe uma mulher alegre, sorridente, simpática e divertida, mas ela carrega traumas contados com uma série de tiques nervosos, como palmas se esfregando, cabelo jogado para o lado e olhos espremidos.

No segundo semestre de 2014, Natália começou a faculdade de Direito, conhecendo Gustavo (nome fictício), seu namorado, em setembro. Gustavo estava um pouco mais avançado no curso, e era muito inteligente e de boa família. Logo eles se aproximaram e, no final de outubro, começaram a namorar. 

No início, tudo no relacionamento “eram flores”. Eles brigavam, como todo casal, e Gustavo constantemente a chamava de “maluca”, mas Natália relevava, já que tudo continuava ótimo, afinal, as brigas eram bem espaçadas e tudo era maravilhoso entre elas. Aos poucos, ela se afastou dos amigos, pois não queria que o namorado perfeito fechasse a cara. 

Em 2017, começou a procurar informações sobre o UNASP, já que muitos membros de sua igreja começaram a estudar na instituição. Então, ela passou a seguir diversas contas no Instagram de pessoas que faziam conteúdos sobre o colégio. O que era para ser uma atividade inocente, “virou um inferno na minha vida”, relata.

Gustavo passava o dia conferindo o que Natália curtia na antiga aba “seguindo” do Instagram, a questionando sempre que a via interagindo com algum homem que ele considerasse bonito. Os xingamentos aumentavam a cada vez e, em certo episódio, ele ameaçou ir na frente da igreja e “falar para todo mundo quem você é”. Por isso, Natália acabou desativando todas as redes sociais, mantendo apenas o WhatsApp para se comunicar com ele.

O relacionamento continuava nas promessas vazias de melhora, nas imensas declarações de amor e nos pedidos de desculpa recheados de presentes caros. Natália continuava relevando as atitudes do namorado, até que começou a participar de palestras na faculdade de Direito sobre “violência contra a mulher”. Em uma dessas palestras, recebeu um “Índice de violentômetro”, o qual mostrava que a ameaça era seguida por morte. 

Ao pensar sobre o índice, passou um filme em sua cabeça. Ela se lembrou da cara fechada. Se lembrou das ameaças. Se lembrou dos xingamentos que recebia, de como ele mudava o tom de voz e a forma de tratamento quando ela não fazia algo que ele queria. Hoje, ela se lembra de pensar: “se eu continuar com ele, vou morrer”. Entretanto, mesmo depois de perceber que estava em um relacionamento abusivo, seu amor por ele acabava falando mais alto do que a força para ir embora.

Após muitas brigas e ameaças, Natália esperava por uma oportunidade e pedia forças para terminar aquele namoro. Sempre que Gustavo percebia isso, a enchia de presentes caros e tentava amarrá-la com esses bens materiais, pois sabia que ela ficaria sem jeito e acabaria adiando a decisão.  

A cada mês, a situação ficava pior. As brigas ficavam mais frequentes, as ameaças aumentavam e a violência também. Até que, em março de 2019, foi a gota d’água. O casal foi para um acampamento da igreja de Natália em um povoado, acompanhados de seus pais, seu irmão, sua prima e seu primo. Certa noite, o pai de Natália chamou a família para comer pizza em uma cidade próxima, a mesma que o irmão dela morava.

Ao entrarem no carro, a mãe de Natália pediu que Gustavo fosse no banco da frente, já que ele era o maior. Por serem sete pessoas em um carro de cinco lugares, o primo dela sentou no seu colo e a prima, no colo da mãe. Durante todo o trajeto, Gustavo manteve a cara fechada. Eles já haviam brigado antes por uma situação similar. Na ocasião, ele havia ficado muito bravo por um homem sentar no colo dela, ao que ela respondia ser um primo.

Chegando na pizzaria, Gustavo enfrentou Natália e novamente a ameaçou, dizendo: “se você colocar alguém no seu colo de novo, você vai ver”. Porém, eles precisavam voltar ao acampamento. Gustavo foi na frente novamente, e Natália, tentando evitar mais brigas (mas sem sucesso), colocou sua prima no colo. Indignado, Gustavo desceu do carro, abriu a porta e começou a gritar na frente de toda a família. 

A mãe, que já estava ciente da situação, rebateu, mas ele repetia que “o problema não é com vocês, é com ela”. Natália então entendeu que o problema, para ele, era o modo como ela se comportava e as coisas que fazia. Gustavo sentou no banco de trás com Natália no colo, e eles passaram todo o caminho até o povoado discutindo. 

Quando chegaram lá, o culto estava acontecendo. Ele tentou sentar ao seu lado para retomar a briga, mas ela se recusou a fazer isso naquele momento e preferiu sair de perto para assistir ao culto. Aproveitando a situação, Gustavo foi até o pai de Natália e começou a argumentar de maneira a tentar fazê-la sair como culpada. O pai até acreditou, mas a mãe desmentiu tudo. 

Ela contou não apenas sobre o que realmente aconteceu na pizzaria, mas também sobre as inúmeras vezes que Natália precisava ir até o hospital com fortes dores de cabeça. Contou da vez que, em uma dessas crises de enxaqueca, havia ficado com o celular da filha e visto as mensagens pesadas que o namorado a enviou após uma briga. O pai, indignado, decidiu levar Gustavo embora. 

A família, então, voltou para a cidade e foram todos dormir no apartamento do irmão de Natália. No quarto, ficaram ela, sua prima, seus pais e seu irmão, e na sala dormiram seu primo e Gustavo. Na verdade, “dormir” não é a palavra certa para o que aconteceu. Gustavo passou a noite inteira levantando e mexendo nas gavetas da cozinha. Ouvindo os barulhos, a mãe de Natália também ficou acordada. Seu medo era que ele pegasse uma faca e tentasse fazer algo com sua filha.  

Depois de uma noite em claro, Gustavo voltou para casa e a família, para o acampamento. Ao chegarem lá, uma amiga chamou Natália para ouvir a história de uma mulher que havia sido expulsa de casa com seus dois filhos, tudo porque o marido havia ficado com ciúmes. Aquilo acabou a impactando, e pensando que aquela poderia ser a sua história, decidiu dar um fim de vez ao relacionamento.

Respira fundo. Engole em seco. Esfrega os olhos. Não chora, não chora, não chora. Depois de uma pequena pausa, a história continua. Naquele mesmo dia, Natália terminou com ele por mensagem, pois tinha medo de ele tentar convencê-la a mudar de ideia. Quando o fim chegou, a dor deu lugar ao alívio. Por um mês, ela se sentiu bem, mas a morte de seu cachorro, em abril, trouxe à tona os dois lutos de uma só vez: a perda de seu bichinho e o término do relacionamento. 

Meses após o fim, Natália ainda sentia o peso de tudo o que havia passado. Ela desenvolveu depressão e ansiedade, e precisou de mais um período na faculdade para concluir seu TCC. Na apresentação, a banca era composta por algumas professoras que ofereceram  as palestras que ela assistiu lá no começo, e aproveitou a oportunidade para agradecer às docentes, que responderam: “você já venceu por ter terminado com ele”. 

Mas o problema de um relacionamento abusivo é que o passado não fica no passado: ele respinga em tentativas de relacionamento atuais. Superar o ex é fácil, mas superar os traumas pode não ser tão simples assim. Até hoje, ela ainda enfrenta as consequências de tudo o que passou. 

O envolvimento com pessoas novas, que era para ser algo tranquilo e prazeroso, perde todo o brilho. Novos relacionamentos vêm sempre acompanhados de um sentimento de que aquilo não é para sempre e que “é bom demais para ser verdade”. Mas, aos poucos, com um passo de cada vez, essa história vai sendo deixada para trás. Ela diz que já entendeu o que é um relacionamento abusivo e como não entrar em um, e agora está reaprendendo a se relacionar novamente.

Infelizmente, a história de Natália não é uma exceção. Existem muitos “Gustavos” por aí, e a história vai se repetindo todos os dias. Essa não é uma linda história de superação. Essa história não tem um final tão feliz assim. Essa é a história de uma mulher que ainda está no caminho da superação. Essa é a história de milhares de mulheres que precisam enfrentar isso todos os dias, e se lembrar de caminhar com um passo de cada vez. Essa é a história de quem ainda busca a cura e, a cada vez que levanta a cabeça, consegue ver bem lá no fundo a luz no fim do túnel.

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