Zombaria de pacientes, gravação de exames íntimos e apologia ao estupro expõem falhas na formação ética de futuros profissionais da saúde.
Amanda Talita
Uma série de incidentes envolvendo estudantes de Medicina no Brasil tem gerado preocupação quanto à formação ética desses futuros profissionais. Casos de zombaria a pacientes, divulgação indevida de exames íntimos e manifestações que fazem apologia à violência sexual destacam falhas no preparo humano nas faculdades de Medicina.
De acordo com um estudo conduzido pela ABEM (Associação Brasileira de Educação Médica), somente 37% dos alunos acreditam que a educação ética adquirida durante a graduação é adequada para enfrentar os desafios da prática clínica. Além disso, o Relatório Mundial da Educação Médica da OMS já havia chamado a atenção para a importância de balancear o saber técnico com competências interpessoais e princípios éticos robustos.
Desrespeito ao paciente
Em São Paulo, duas estudantes de Medicina foram denunciadas por injúria após publicarem um vídeo nas redes sociais zombando de uma paciente que havia passado por múltiplos transplantes de coração e rim. A paciente, Vitória Chaves da Silva, de 26 anos, faleceu dias após a divulgação do vídeo. As estudantes, identificadas como Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeiras Soares Foffano, estavam em curso de extensão no Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
O advogado criminalista Gustavo Bernardes comentou sobre as possíveis implicações legais do caso. “A gravação e divulgação de conteúdo que ridiculariza uma paciente em situação de vulnerabilidade pode ser enquadrada como injúria, conforme o Código Penal. Além disso, há uma clara violação dos princípios éticos que regem a prática médica”, explica.
Apologia à violência sexual e gravação intima
Uma situação semelhante ocorreu na Faculdade Santa Marcelina, também em São Paulo, onde estudantes de Medicina foram fotografados segurando uma faixa que com uma frase que fazia apologia ao estupro. Tal posicionamento gerou repúdio de entidades de direitos humanos e levou a instituição a expulsar 12 estudantes que estavam presentes na foto ou que participaram do desenvolvimento da ideia.
“Comprometida com a transparência, os princípios éticos e morais, a dignidade social, acadêmica e a legislação vigente, a Faculdade Santa Marcelina reafirma sua postura proativa e colaborativa em relação ao assunto, perante as autoridades competentes”, afirmou a faculdade em nota pelas redes sociais. A Associação Atlética Acadêmica, a qual pertenciam os alunos, também permanece interditada desde o ocorrido.
Entre as ocorrências que mais causaram comoção nas redes sociais, está a registrada em Goiás. Uma universitária foi suspensa por divulgar nas redes sociais um vídeo feito durante um exame ginecológico de uma paciente, em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), em Anápolis.
A instituição confirmou a suspensão da aluna e afirmou que instaurou um processo disciplinar. O caso está sendo investigado pela Polícia Civil. De acordo com o delegado responsável pela operação, Danillo Proto, em entrevista para o G1, o vídeo mostra a paciente parcialmente despida e revela seu nome completo — o que configura violação de sigilo profissional.
Notas institucionais
O diretor acadêmico da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Dr. Henrique Silveira, vê nas ocorrências um reflexo da desconexão entre teoria e prática humanística. “As diretrizes curriculares apontam a ética como pilar, mas, na prática, ela é tratada como matéria secundária. Isso precisa mudar”, reitera.
Para ele, eventos como trotes e produções de conteúdo para redes sociais demonstram uma cultura permissiva. “Quando comportamentos ofensivos são tolerados ou banalizados dentro da universidade, o ambiente acadêmico deixa de cumprir seu papel educativo e formador”, ressalta.
O Conselho Federal de Medicina reforçou, em comunicado oficial, a importância da preservação da dignidade dos pacientes e do sigilo profissional. “A ética médica deve ser inegociável e permanentemente debatida dentro das instituições de ensino”, destacou a entidade.
Casos como esses, geram debate sobre os critérios de seleção para cursos da área da saúde e a necessidade de reforço em conteúdos voltados à formação moral e comportamental dos estudantes. O desafio vai além do currículo: envolve cultura, responsabilidade institucional e consciência profissional.