Paula Orling
A nossa sociedade está superlotada de memes, afinal, a gente decide que é “melhor rir pra não chorar”. Mas, às vezes, o riso é tão comum que até a vontade de chorar passa e nós ressignificamos o sofrimento dizendo que não tem nada que se possa fazer e que a tristeza é normal. Mas não significa que o problema some, só que nos acostumamos com ele.
Um bom exemplo de tragédia que virou piada é a frase “VOCÊ QUER ME CALAR?”, em caps lock mesmo, porque é um grito de alguém que tem muitas ideias para ficar em silêncio. O meme viralizou nas redes sociais e começou a ganhar força quando uma política, candidata ao governo do Piauí, reclamou da “bronca” que levou do mediador de um debate. A Lourdes Melo foi chamada no debate para fazer uma pergunta para um dos outros candidatos e ela teria 30 segundos, mas digamos que ela interpretou o tempo como meramente sugestivo e decidiu falar um pouquinho (ou nem tão pouquinho) mais.
É claro que tudo isso é tão caricato que parece a situação de uma lunática sem senso, e eu não estou aqui pra julgar as motivações da mulher, nem pra dizer que o mediador foi sexista mas precisamos concordar que isso reflete uma realidade… todos os dias mulheres de todo o mundo são caladas. O silêncio tem origens diferentes: um governo que considera mulheres inferiores, uma empresa misógina, jogadores que desvalorizam opiniões femininas ou vertentes religiosas, ou outros grupos sociais, que acreditam que mulheres têm o dever de cozinhar, limpar e falar apenas para prestar contas ou educar filhos.
Às vezes, toda essa história de silêncio das mulheres parece absurda, ultrapassada, distante, quase medieval, mas essa é a exata projeção da autora Christina Dalcher. Ela escreve em Vox, a história de uma sociedade, americana, para ser mais exata. Nessa sociedade, as mulheres têm um limite de 100 palavras por dia e, caso passem desse número (ALERTA DE SPOILER), levam choques de pulseiras que contam suas palavras. Se os choques forem contínuos, a mulher morre. Homens não, só mulheres. As suas próprias palavras são usadas contra elas, no sentido mais literal possível. As palavras matam.
E aí vai uma anedota: quando eu era pequena, meu pai sempre me contava como eu deveria cozinhar um sapo, e eu aprendi bem. O coloque vivo em uma panela com água fria e leve ao fogo. Deixe a água esquentar aos poucos e o sapo não vai perceber que está sendo cozinhado até ser tarde demais. Se, por outro lado, você jogar um sapo na água fervente, ele vai pular para fora da panela.
Acontece que na ficção Vox, mais real do que ficcional, as mudanças vieram aos poucos, passo a passo. O “sapo foi fervido aos poucos”. A cada mudança, as pessoas se acostumaram, até que já estivessem completamente escaldadas e fosse tarde demais para mudar. Enquanto esperavam para ver o que iria acontecer, não protestaram o suficiente, não lutaram como poderiam – como deveriam.
E, o que me choca é a passividade de quem vê o caos começando ao seu lado e não se manifesta. No caso do livro, os países próximos aos EUA. E no caso real, do nosso mundo atual, quem deveria fazer alguma coisa e está rindo de memes como se não houvesse amanhã? Provavelmente a resposta é “nós”. Na verdade, não, porque “nós” é genérico. A resposta é simples. Eu deveria fazer alguma coisa. Você também deveria. Deveríamos falar enquanto ainda temos voz pública, enquanto ainda termos liberdade de falar enquanto mulheres.
Tudo bem, eu sei que nem sempre é fácil lutar, ou mesmo possível. Muitas vezes, a oposição é maior, e real. Existem vários lugares que já vivem nessa realidade. O Afeganistão, por exemplo, conseguiu silenciar toda uma população feminina, causada por um domínio extremista, que usa o argumento da religião para matar e calar.
Contudo, em boa parte do mundo, ainda é possível combater os silenciadores. E, mesmo onde a voz feminina parece não ter vez, alguém tem o poder de falar. A mudança vem aos poucos. Por meio desse blog, eu alcanço você e você alcança centenas de pessoas que eu nunca alcançaria e assim por diante. Nós temos o poder de impactar uma pessoa de cada vez rumo à proteção da nossa própria voz.