“Os sonhos são os guardiões do sono e não seus perturbadores.” Sigmund Freud
Adalie Pritchard
Encontrava-me nua, em cima de uma árvore formosa de frutas vermelhas no meio de um jardim que parecia infinito. Casualmente, uma cobra gigante veio conversar comigo. Aos meus seis anos de idade, eu a descreveria como uma anaconda verde, talvez café. Enquanto a malvada cascavél deslizava sensualmente entre as folhas nos ramos ao meu redor, discutimos sobre o futuro do planeta. Nunca esqueci do sonho, com o tema escolhido diretamente do gênesis da Terra, e as cobras continuam sendo um viés recorrente no meu subconsciente.
Shany me orientou a prestar atenção àquelas cobras, pois segundo sua experiência, representam pessoas próximas que nos desejam mal. Ela aconselha: “Tenha cuidado com as pessoas que você tem do lado, não é ninguém de longe”. Shany, ou Rosany Castillo, é uma sonhadora, além de ser uma agricultora e mãe. Ela não presta atenção a qualquer sono, mas sim aqueles que a façam acordar em choque.
Rosany conta que há anos ela sonhou que estava com seu namorado na praia. De repente o casal via que se aproximava uma cobra vermelha e longa. O namorado, tentando “protege-la”, colocou-a em uma tábua na água. A bicha enrolou nele. “No meu sonho, eu via a cobra vermelha e sabia que era uma mulher”, Rosany descreve. Logo depois o namorado a deixou por outra mulher… ruiva e alta.
Por milênios, a humanidade tem procurado interpretar os sonhos para utilizá-los como um guia para a vida. É uma crença popular que os sonhos são mensagens de seres superiores para nós. Paralelamente, muitos consideram os sonhos aleatórios e, portanto, a busca do seu significado uma causa fútil. Quem nunca contou um sonho perturbado e escutou um: “você assiste filmes demais!”? A realidade provavelmente esteja entre as duas premissas.
Os sonhos são importantes?
Sonhar não é apenas curioso, é um processo biológico vital para a saúde mental. Ajuda nossa motivação, criatividade, juízo e raciocínio. O psiquiatra Octávio Monterroso Monzón, explica que dormimos em ciclos, que consistem em quatro fases. Cada ciclo, em média, dura 90 minutos. As fases podem ser divididas em dois: o rem, onde ocorre movimento rápido dos olhos, e não rem. O doutor esclarece que sonhar muito não significa que você não descansou adequadamente. “As fases do sono onde você sonha são mais benéficas para a saúde”, reitera.
Da mesma forma, não sinta que os pesadelos são um sinal de uma saúde mental deficiente. Eles podem ter um significado clínico ou não. Os pesadelos, muitas vezes, são a ferramenta que o cérebro utiliza para se libertar da ansiedade vivida durante o dia. Também podem servir como ensaios mentais para situações perigosas no mundo real. Geralmente, nossos temores se apresentam por meio deles. No entanto, o psiquiatra pontua que “não são proféticos.”
São importantes, sim. Agora, são interpretáveis?
Também “são muitas as ideias mágicas ou religiosas sobre os sonhos no país onde moro (Guatemala)”, disse Monterroso. Muitas pessoas pensam que interpretação dos sonhos é algo tão simples quanto: ‘se eu sonho com uma cobra significa que terei problemas’.” Sigmund Freud estudou os sonhos com profundidade, e elaborou teorias sobre a interpretação delas. A teoria dos sonhos de Freud propõe que são um caminho direto para o inconsciente onde guardamos informações ocultas. Nas palavras do Dr. Monterroso, os sonhos são o baú da mente.
Os sonhos são uma porta para essas informações sobre nossas emoções, desejos e pensamentos reprimidos. Esses aspectos inconscientes ficam ocultos e protegidos por nossa parte consciente. Freud costumava usar a metáfora de um iceberg para descrever esses dois principais aspectos da personalidade humana. A ponta do iceberg, representa a mente consciente e o subconsciente, a parte submersa.
Como humanos, somos um constante trabalho em progresso. Portanto, entender o que acontece dentro das nossas mentes pode nos ajudar a lidar com nossos sentimentos. Esse é o objetivo da psicanálise. A psicóloga psicanalista Aline de Carvalho da Silva esclarece que: “tornar o conteúdo reprimido em consciente, pode dar significado ao sofrimento vivenciado, proporcionando alívio, individuação, e conscientização das mudanças necessárias para o bem-estar, autoconhecimento e desenvolvimento de potencialidades aos pacientes.”
Falando dos nossos desejos reprimidos, você se lembra daquele sonho que te fez duvidar da tua bússola moral? Não se defina como uma pessoa perversa por causa disso, pois Freud diria que “o homem virtuoso se contenta em sonhar o que o homem mau faz na vida real.” No livro de Freud, A Interpretação dos Sonhos, publicado em 1899, o psicanalista atribui essa categoria de sonhos ao conflito entre as tendências sexuais e as fórmulas morais impostas pela sociedade.
“Esses desejos ficam ocultos à consciência e vêm à tona quando sonhamos através de símbolos”, explana a psicóloga Aline. “Isso acontece porque quando estamos dormindo, ficamos relaxados e ‘baixamos a guarda’, o que permite que o inconsciente tenha maior autonomia em relação ao consciente.” Ela realça que a melhor maneira de entender aqueles símbolos é analisá-los através da conversa entre paciente e psicanalista.
Nessa perspectiva, não há um manual de interpretação para sonhos. Cada objeto, figura, sensação ou situação tem um significado particular para cada indivíduo. Porém, Freud disse que “o que é comum em todos esses sonhos é óbvio: eles satisfazem completamente os desejos excitados durante o dia e que permanecem não realizados. Eles são simples e indisfarçáveis realizações de desejos”, do livro A Interpretação dos Sonhos.
Minha cobra versus sua cobra
Se você é como eu, após estudar Freud, talvez pensasse que seria prudente deixar de contar seus sonhos a qualquer um, pois são sumamente pessoais. O psicanalista sueco Carl Jung os entendia como uma parte importante do desenvolvimento da personalidade, um processo que chamou de individualização. Para Jung, significava “tornar-se um ‘indivíduo’ e, na medida em que a ‘individualidade’ abrange nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, também implica tornar-se você mesmo”, da coleção de ensaios sobre a psicologia analítica. Em síntese, acreditava que os sonhos servem para compensar partes da psique que são subdesenvolvidas na vida enquanto desperto.
Vale lembrar que é mais fácil entender as coisas olhando de fora. Até o mesmo Jung notou que interpretar seus próprios sonhos era quase impossível. “Tenho percebido que os sonhos são tão simples ou tão complicados quanto o próprio sonhador, só que estão sempre um pouco à frente da consciência do sonhador”, explicou das Obras coletadas, Volume 10. “Não entendo meus próprios sonhos melhor do que qualquer um de vocês, pois eles estão sempre um pouco além do meu alcance… O conhecimento não é vantagem quando se trata dos próprios sonhos.”
Entender o sonhador e não o sonho
“Uma mãe que tem medo de admitir que tem ressentimento dos seus filhos pode interferir tanto em suas vidas, sob o pretexto de se preocupar com seu bem-estar e segurança, mas sua superproteção é realmente uma forma de punição”, disse Calvin Springer Hall da A Primer of Freudian Psychology. Hall propôs que os sonhos são uma concepção de elementos das nossas vidas pessoais. Para entendê-los, é preciso entender o indivíduo e o porquê de suas atitudes.
Segundo Hall, entender um sonho requer conhecer as ações do sonhador dentro do sonho, objetos e figuras, interações entre o sonhador e personagens, cenário, transições e o resultado do sonho. Voltando o foco a nossa sonhadora Rossany, temos um claro exemplo de como um sonho pode revelar muito sobre os acontecimentos da vida, proféticos ou não.
A mãe de Rossany estava doente, tinha câncer, e claro, encontrava-se em uma situação difícil. Lamentavelmente, essa parte não era um sonho. Uma noite a jovem sonhou que estava em uma árvore seca com sua mãe, que tinha muitas cobras olhando para elas desde cima. “Nós tínhamos que cruzar um rio longo e sujo, então eu me joguei com minha mãe para tentar cruzar para fugir das cobras”, relata. A metade do rio, Rossany perdeu sua mãe de vista, mas logrou escapar. Ao contar o sonho para um amigo, ele teve receio de expor a suposta explicação para ela.
Pouco tempo depois, Rossany teve que organizar o funeral da sua mãe. Para ela, ficou claro que o rio sujo representava problemas, e que sua mãe não iria sobreviver. As cobras da Rossany representavam sua própria família, situados em uma seca “árvore genealógica”. Era sua realidade, específica à sonhadora, enquanto a minha cobra edenistica era apenas um jeito de indagar sobre o mundo, uma novidade para mim. No livro memórias, sonhos e reflexões, de Jung, ele expressa que “o sonho mostra a verdade interna do paciente como realmente é: não como se imagina que seja, e não como ele gostaria que fosse, mas como é”.