Até quando você fugirá de si mesmo?

In Geral, Saúde

Há histórias que ainda precisam ser contadas.

Bruno Sousa 

Em que ponto da vida você já chegou e se perguntou sobre quem realmente você é? Que experiências vividas fizeram você refletir sobre sua existência? Ao debruçar os meus dedos sobre as teclas desse computador, numa tarde chuvosa de quinta-feira, pensei que nasci, sim, para escrever e relatar histórias que ainda não foram contadas.

Bem, era por volta das 10 horas da manhã de quarta-feira quando iniciei uma chamada de vídeo pelo Zoom. O principal propósito: conhecer a história dela, Elizangila Leite, nascida e criada na grande metrópole de Manaus. Os seus cabelos são ruivos, seu sorriso é bem radiante e o seu olhar marcante, como de uma criança que espera ansiosamente pelo o abraço de seu pai depois de um dia inteiro fora.

Ainda me questiono, “por onde devo eu começar?” Mas deixarei com que o som desta canção ouvida por mim me leve para longe. Elizangila relata que desde criança sempre foi muito habilidosa. Dentre suas habilidades, estão o gosto pela arte, música, cantar em corais e falar espanhol. Quando criança o seu sonho era ser uma grande médica e poder ajudar as outras pessoas. 

O sonho da medicina

Durante nossa conversa, Elizangila está muito empolgada ao contar sua história. Aliás, quem nunca fica feliz ao falar de si mesmo! Pois quando criança, ela desenhou em um pedaço de papel uma bola redonda que era sua cabeça, um triângulo para simbolizar o seu corpo, risquinhos para serem seus braços e pernas e entre a grande bola e o triângulo um estetoscópio. Ao correr diretamente ao colo do pai, dizia que seria uma grande médica. 

Eita! Que boas memórias! Além disso, ela relata que a sua pediatra, doutora Cíntia, foi fonte de inspiração para tomar essa decisão. Em meio a boas gargalhadas, ela rememora os olhos verdes que a doutora tem e diz “se eu for médica vou ter olhos verdes”. O pai também foi um canal para esse sonho, já que ele queria ter se tornado um médico, como conta. Percebo que ao falar dele o seu semblante muda, e me transmite sentimento de saudade.

A viagem 

Para o amadurecimento dessa escolha e, com o apoio do pai, Elizangila decide fazer Técnico de Enfermagem, pois desta forma ela conseguiria ter a real certeza do que queria ser. Após anos de estudos, com 18 anos se formou em Técnico de Enfermagem. Mas a chama de cursar Medicina ainda estava acesa no seu coração. 

Ela conta que a medicina no Brasil é muito difícil. Então, uma das soluções foi sair de casa, assim como um passarinho que precisa deixar o seu ninho, Leite fez. Prestou uma prova para a Universidade Federal da Venezuela e foi aprovada. Com o início da realização desse sonho, ela voou em busca da sua profissionalização. 

Ao todo foram doze anos morando na Venezuela. Mas nao só a formação do tão sonhado desejo foi realizada. Com os olhinhos brilhando e o sorriso de felicidade, a sua ida para fora do Brasil lhe deu a oportunidade de encontrar o amor da sua vida, com quem está casada há 10 anos. 

E claro! A família cresceu. Elizangila tem dois filhos, vive atualmente na Serra Catarinense, numa cidade chamada Lages, que é a maior cidade da região, com mais de 150 mil habitantes. Por isso, é conhecida como a Capital do Turismo Rural e abriga a tradicional Festa do Pinhão no mês de junho.

Há oitos anos, Elizangila exerce sua profissão e se especializou em quatro áreas que são: saúde da família, estética, ginecologia obstreta, pediatria e agora está terminando a especialização em autismo. 

A busca por respostas 

Tudo parecia bem, ninguém imaginava que um diagnóstico poderia abalar a alegria daquela família. Neste momento, Elizangila com a voz embargada, mas tentando manter o sorriso no rosto, relata o que aconteceu. Daniel, o filho caçula, quando tinha dois anos, começou a apresentar sinais de uma criança com autismo. Pelos marcos do desenvolvimento dele era possível perceber. 

Ao voltar no passado, podia-se perceber que ela estava tendo uma viagem no tempo. É como você tocar em uma ferida cicatrizada e lembrar dos momentos em que ela foi feita. Assim, ela prosseguiu “ao andar pela pontinha dos pés, por falar enrolado, era seletivo com a comida, tinha difícil interação com as pessoas e a maneira com brincava com os brinquedos”, lembra das cenas que levaram a buscar o diagnóstico.

Passando por toda essa situação, ela fala que algo curioso que ele fazia era quando pegava um  banquinho e ficava vendo a máquina de lavar, e dançava no ritmo da lavagem. De acordo com ela, movimentos repetitivos acalmam o cérebro do autista.

Diagnóstico em dose dupla?

Na época, muitas pessoas falavam que poderia ser a confusão de idiomas entre o espanhol e o português. Houve consultas com muitos psicólogos e pediatras, mas vários diziam ser atraso de fala e que cada criança tinha o seu tempo. Mas, no fundo do coração de Elizangila, ela sentia, sabia que o filho tinha alguma coisa. 

Um ano se passou. Quando Daniel completou os seus três anos, veio o diagnóstico de que ela era uma criança autista. Mas a aflição foi maior quando o médico com os olhos fixados para Elizangila disse “mãe, você também possui traços autistas”. No exato momento, Leite ficou sem chão. 

Um turbilhão de coisas passou pela cabeça da doutora, através da sua feição eu pude sentir que os seus pais sabiam disso, mas que esconderam uma grande verdade dela. Assim, me passou a impressão de que ela se sentia enganada. Inclusive nesta época a única pessoa que foi sua fonte de refúgio foi o esposo. 

Depois de um tempo, Elizangila foi atrás de tratamento. Procurou psicólogo e um psiquiatra e foi diagnosticada com grau leve de autismo e superdotação. Ela possui dupla excepcionalidade e pelo fato de falar muito bem, os traços não eram perceptíveis. “É como se as minhas habilidades anulassem o autismo,” ressalta.

Dentre as comorbidades do autismo ela possui: flexibilidade de rotina, seus horários precisam ser cronometrados e curtos, sensibilidade auditiva, precisa usar fone e tapa ouvido com frequência. Se ela ficar muito tempo exposta a sons, pode ter  crises sensoriais, que causam dor de cabeça e vômito. Além do autismo na fase tardia, Elizangila descobriu que possui TDA – Déficit de Atenção sem Hiperatividade, um diagnóstico bem comum em adultos. “A minha hiperatividade é cerebral, minha mente fica muito agitada e a milhão”, cita ela com a voz entristecida. 

Aceitação

A pior fase é se aceitar, era possível sentir de longe Elizangila com um semblante de vitória e superação ao ter enfrentado essa fase tão difícil da vida. “No início eu não me aceitei, me senti mal, entrei em depressão”, relata. A cada palavra que sai da boca da doutora, era como se passasse um flashback de tudo, eu pude sentir a dor transmitida por cada frase.

Ela se questionou muito, “como uma médica pode ter autismo? Como serei aceita pela sociedade? As pessoas não vão se consultar comigo”, lembra. A parte que mais doeu foi quando a doutora disse “Como eu vou ajudar o meu próprio filho? Se eu não consigo ajudar a mim mesmo”, argumenta. Na real, mesmo a quilômetros de distância separados por uma simples tela de computador, era notória a dor dela. 

Uma das peças fundamentais nesse processo, foi o esposo. Ao falar dele os olhinhos dela brilhavam, as bochechas ficaram avermelhadas, você sente que é amor de verdade. Durante a nossa conversa, algo que marcoi foi a a frase: “eu preciso ser forte para cuidar de mim e do meu filho, mas ele precisa ser forte para cuidar dele, do meu filho e de mim.” 

Os dois estudaram juntos sobre o assunto e após quebrar os estereótipos existentes sobre o autismo, ela entendeu o seu propósito e percebeu que não era como se pensava sobre o assunto. Leite mesmo ressalta que “o conhecimento liberta”. Através disso, ela voltou ao seu propósito, que sempre foi ajudar aos outros.

O legado 

A doutora Elizangila, se encontrou e nessa descoberta percebeu que muitas pessoas têm essa dificuldade de diagnóstico. Assim, hoje ela usa as suas redes sociais para quebrar os estereótipos de autismo. Com um belo sorriso no rosto, ela esclarece “eu posso ser um canal de esperança”.  

Quando nas suas consultas às mães descobrem que ela é autista, vem o pensamento de que se a doutora conseguiu, o meu filho também consegue. “Eu sinto que vivemos em ciclos da vida, o meu propósito de vida é ajudar as pessoas no meu tempo e espaço”, salienta.

Aos 29 minutos de conversa, após eu fazer uma pergunta bem reflexiva sobre o seu legado, um silêncio toma conta da sala de reunião e as lágrimas caem dos seus olhos escorrendo sobre o seu rosto. Mesmo separados por 906 quilômetros, eu pude sentir a dor de uma mulher que batalha diariamente para ser o seu melhor. 

“Deus é tão maravilhoso que ele escolhe as pessoas certas, eu sou grata. Ele me capacitou muito, eu não chegaria onde cheguei hoje se eu fosse uma neuro típica qualquer. Porque eu era tão cega em ser quem eu sou, que hoje eu sinto que eu sou uma vencedora. Deus nunca dá um fardo que não possamos suportar”, conclui.

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