Refletir sobre o pensamento de que nós nunca jogamos nada no lixo, mas apenas o trocamos de lugar deve ser levado em consideração antes de comprar o que a impulsividade deseja
Djuliane Rodrigues
Imagine que você acaba de chegar em casa e se depara com o chão de seu apartamento inundado, o tapete completamente submerso na água, os pés dos móveis de madeira danificados pela umidade, enquanto a torneira da pia está aberta, jorrando água. Seu gato, olhando de cima do armário, fica desesperado, tentando entender o que está acontecendo. Agora você tem um mini dilúvio para resolver de forma racional. O que você faria primeiro: fecharia o registro da torneira e secaria o chão ou secaria o chão para depois fechar a torneira? Esta é uma metáfora de Annie Leonard escrita em seu livro “A história das coisas”. Para ele, estamos fazendo exatamente o contrário da ação pautada pelo racional: deixando a torneira do consumo aberta a fim de suprir alguma necessidade interna.
Noemi Almeida de 24 anos passou pela experiência da metáfora de Leonard em seu contexto familiar. Quando criança, ela notava seus pais se tornarem acumuladores de objetos desnecessários. Na concepção deles, era importante guardar sacolas, roupas e objetos, pois, em algum momento, estas coisas poderiam ser úteis. O problema era que nunca usavam, acumulavam inconscientemente. O hábito acumulador desencadeou traumas familiares. Contudo, desde a sua adolescência Noemi já seguia uma linha contrária à de seus pais. Ela pensava: “se for para guardar algo dos lugares, que seja só as memórias.” Anos depois, Noemi, já na fase adulta e impulsionada por seus objetivos pessoais, saiu de casa e passou a morar sozinha. Foi nessa fase decisiva da vida e independente que ela precisou escolher entre o descartável e o essencial, até chegar à conclusão de que “para viajar para muitos lugares e ter muitas experiências, iria atrapalhar se tivesse muitas coisas”. A partir daí, ela passou a praticar o estilo de vida minimalista.
O minimalismo
Reduzir a vida somente ao essencial nunca foi tão necessário para a existência humana. Escolher adaptar-se a um conceito minimalista em uma sociedade consumista também não é uma decisão fácil. Afinal, quando se escolhe qualquer coisa, será sempre necessário abrir mão de algo que outrora parecia ser indispensável. Antes de discorrer sobre minimalismo, precisamos desconstruir os estereótipos sobre o assunto. Na superfície, o pensamento em ser minimalista parece bastante simples. Eles dizem que tudo o que você precisa fazer é ser frugal com seus gastos, exercitar simplicidade, jogar fora (ou doar) tudo o que não precisa e se mudar para uma pequena casa. O que o criador de conteúdo digital Alexandre Chahoud vai dizer é que o movimento “se torna um rótulo quando se trata apenas de mostrar um cômodo branco com poucos objetos. É claro que os dois podem existir juntos, mas um, necessariamente, não precisa do outro.” Esta é apenas uma representação de decoração minimalista, porém, “muita gente confunde o estilo de vida com a decoração minimalista”. Portanto, o conceito não é tanto sobre ter o mínimo possível, mas descartar o supérfluo, a fim de dedicar mais tempo ao que é útil. Assim, a ideia gira em torno de uma simplicidade voluntária, que se inicia a partir da redução do consumo e chega a todas as esferas da vida: trabalho, alimentação, relações e saúde. É viver com menos, equilibrar-se somente com o necessário, deixando de lado o que seria supérfluo. Ao redirecionar a vida para o que é essencial, a missão do minimalismo passa a ser pautada no desejo de “diminuição do consumo e mais investimento financeiro em experiências como viagens, mais tempo com a família e amigos e outras atividades” que proporcionem tranquilidade e prazer.
Além do consumo
Falar de excessos e não mencionar sua origem é como cortar a grama em tempos chuvosos, sabendo que em pouco tempo ela voltará a crescer. Por isso, encaixa-se aqui as projeções da indústria da moda e seus impactos de sua produção e circulação em massa. De acordo com a ONU Meio Ambiente, a indústria da moda responde por 8% a 10% das emissões globais de gases-estufa. É o segundo setor da economia que mais consome água e produz cerca de 20% das águas residuais do mundo e ainda libera 500 mil toneladas de microfibras sintéticas nos oceanos todos os anos.
As pessoas consomem, em média, 60% mais peças do que quando comparado com 15 anos atrás, e cada item é mantido no armário por metade do tempo de antes. A complexa e diversa cadeia da moda no mundo é, no geral, insustentável. O dado impressionante é que se perde cerca de US$ 500 bilhões ao ano com o descarte de roupas que vão direto para aterros e lixões e sequer são recicladas. Porém há uma infinidade de excessos que vão além da vestimenta.
Evidentemente, quando se trata de consumo, poucos são os que refletem sobre o que se faz com a roupa descartada. Antes de comprar algo, é preciso certificar-se de que a peça adquirida será, de fato, utilizada e para onde ela irá depois de desfazer-se dela. Além do mais, refletir sobre o pensamento de que nós nunca jogamos nada no lixo, mas apenas o trocamos de lugar deve ser levado em consideração antes de comprar o que a impulsividade deseja.
Sabendo disso, como seria possível consumir de forma consciente? Os apoiadores de práticas sustentáveis como Nataly Nery sugerem uma mudança de perspectiva, cuja finalidade é ir além da quantidade. “Não é preciso ter 50 mil blusas, calças e sapatos. Mas você pode, sim, pagar 50 reais por uma peça justa ou pagar 300 reais por um tênis que possui tecnologia avançada, respeita o meio ambiente e valoriza as pessoas que trabalharam para produzi-lo. E você ainda pode aprender sobre a maravilha que é o mundo do brechó, no qual você usa roupas usadas e aprende a formular seu próprio estilo de roupas”, aponta. Ademais, consumo consciente não é só ter pouca roupa. É “saber de onde está comprando”, considerar onde está “investindo seu dinheiro” e em que tipo de “posicionamento” você diz que acredita ou que não acredita quando compra determinada marca.
Apelo emocional
O Instituto Akatu fez uma pesquisa sobre o consumo consciente com 1.090 pessoas e o resultado revelou que 76% dos 1.090 entrevistados – homens e mulheres com mais de 16 anos – não praticam o consumo consciente. O apelo emocional do marketing trabalha em cima de valores como: mais do que atender a uma necessidade específica, o produto conquista o coração de quem compra e desperta nele uma sensação positiva que o leva ao ato da compra. Isso explica o porquê de as grandes propagandas televisivas se apoderarem de um cenário caseiro e familiar ao propagar uma marca de refrigerante ou uma margarina.
Na maioria dos casos, a compra é por algo que a pessoa já tempossui, ou que irá utilizá-lo por pouco tempo. Ana e sua mãe Wanda Freitas faziam parte dos consumidores compulsivos. “Quando comprávamos, nos sentíamos muito bem, felizes, mas algumas vezes era só felicidade momentânea.” A compulsividade as faziam comprar coisas que elas já possuíam. 2019 foi um ano de mudanças para elas. “Nos mudamos e tivemos muitos gastos com coisas necessárias do novo apartamento, mas também com coisas supérfluas. Isso resultou em problemas de saúde na nossa família.” Nessa fase, o que dificultou para elas foi a instabilidade emocional. “A cada tristeza ou alegria era basicamente uma compra nova”, relembra. Nesses momentos, Chahoud adverte que é preciso, “primeiramente, procurar entender se aquela compra é essencial para nossa vida.” Isso pode ser determinado com quatro simples perguntas: “Eu quero? Eu posso? Eu preciso? Eu devo? Caso seja positivo para as quatro, então, provavelmente a compra será consciente”, enumera.
Ana e sua mãe ainda relatam os reflexos do excesso de compras nessa fase de mudanças. “Estava afetando nosso psicológico e, no final do mês, quando as contas não fechavam, vinha a culpa e a ansiedade”, conta Ana. A.” A psicóloga Marlena Saraiva ressalta que isso é um sentimento muito comum quando se trata de comportamento compulsivo. “Ele é capaz de gerar alívio imediato, seguido de sensação de prazer e satisfação. Já que o alívio e o prazer são momentâneos, após alguns minutos, a pessoa estará sentindo um novo desconforto, mas desta vez em conjunto com todos os sentimentos negativos supracitados”, inclusive o sentimento de culpa.
Para que sejam trabalhadas as compulsões em terapia, Marlena sugere comportamentos mais adaptativos capazes de substituir a compulsão do prazer momentâneo. “Supomos que fazer atividade física como corrida também provoque um estado de prazer no indivíduo. Ao identificar o que lhe satisfaz, a pessoa poderá substituir o comportamento compulsivo pelo comportamento de correr, rompendo o ciclo da compulsão”, exemplifica.
Minimalismo não é quantitativo
Voltando à primeira pessoa desta reportagem, cuja experiência com o estilo de vida minimalista tenha lhe proporcionado inúmeras vantagens, sobretudo na praticidade da vida, Noemi ressalta que o essencial para ela está relacionado à qualidade. “Eu sempre fui muito pobre, e quando passei a praticar o minimalismo eu ganhava 800 reais como estagiária. Mesmo assim, não abri mão da comida e das roupas que fossem de qualidade – ainda que fossem de brechós –. Em relação às coisas materiais, desfiz-me de quase tudo.” Entre inúmeras vantagens, a mais satisfatória para ela foi não precisar mais passar horas do seu final de semana arrumando a casa, tempo este que poderia ser aplicado em momentos de lazer.
Por fim, sustenta-se a ideia de não frisar o quantitativo quando o assunto for minimalismo, porque, se fosse para limita-lo a essa superficialidade do quanto se tem, seríamos infelizes por não nos encaixarmos no movimento, pois o que é essencial para mim pode não ser para o outro. Esteja disposto a desapegar de coisas que não são mais importantes que as pessoas ao seu redor e a valorizar as coisas simples, pois “somente quando perdemos tudo é que estamos livres para fazermos qualquer coisa” e “as coisas que você possui acabam por possuí-lo”.